quinta-feira, 2 de outubro de 2025

O primeiro dia.

Catarina saiu pela porta da sua nova casa, no limite da aldeia, e dirigiu-se para a floresta pelo caminho antigo, que partia daí.
Não tinha medo da floresta, nem das pedras grandes que assobiavam, nem da escuridão que chegava antes do dia terminar, dos lobos que podiam aparecer a qualquer um e nem de sabe-se lá que criaturas que uivavam de noite e se escondiam nas sombras.
O medo acabara.
A partir de hoje, já não sentia medo.
O seu medo morrera e ficara para trás.
O gato preto que aparecera no muro hoje de manhã, a manhã do seu casamento, seguira-a o dia todo.
Espreguiçara-se enquanto vestia o vestido branco e penteava o cabelo, enfeitando-o com as pequenas rosas pálidas do arbusto do quintal da vizinha do lado, que as trouxera num cesto, acabadas de apanhar.
Seguira-a pelo quintal enquanto fechava a porta e confirmava se as janelas estavam fechadas.
Acompanhara-a e à vizinha os poucos passos que a levavam até à igreja, e depois mais uns quantos enquanto o pai a acompanhava até ao altar, com o sorriso de um bom negócio acabado de concretizar no rosto.
Sentara-se ao lado dela enquanto o noivo a recebia como legítima, não tanto para amar e cuidar, mas mais para possuir e ser obedecido, com um sorriso semelhante ao do pai.
Catarina não tinha tido paz na sua casa.
O pai agredia-a com violência, e depois os irmãos repetiam o comportamento.
O vestido de mangas compridas e decote discreto escondia as marcas que recebera nos braços e nas costas ainda há uns dias.
A sua mãe morrera num dia de chuva, às mãos do pai.
Catarina era uma bebé de três anos que sentira o seu peso em cima quando isso acontecera, porque a criança ao colo não tivera o poder de a proteger do monstro atrás dos olhos do marido.
Era a sua primeira memória.
E agora o marido, no dia do casamento, continuava a tradição de família.
Agora que se recolhiam ao seu novo lar e recebiam a família para jantar, o marido decidira que a carne não estava cozinhada ao seu gosto, e decidira que ela merecia ser castigada por isso.
O pai e o irmão aprovavam.
Catarina só se tinha a ela.
A floresta e a solidão pareciam-lhe menos temerosa do que a vida que lhe era prometida naquela casa bonita e arranjada, com o doce sonho de flores coloridas no parapeito e nos canteiros do jardim.
O gato preto continuava a seu lado.
Agora bocejava, e a seguir avançava para o caminho, virando-se para trás e soltando um miado, como que a chamá-la para a escuridão.
Catarina olhou novamente a casa, a ribeira a cantarolar inocente com o sol a esconder-se atrás, na serra, as folhas das árvores a agitar com a leve brisa que se levantara. 
A faca escorria sangue, manchando-lhe o vestido branco, e os corpos jaziam atrás de si quando se voltou, a porta da casa aberta a deixar espreitar a pequena cozinha que não veria mais.

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