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Mensagens

Voar nas asas do vento

Carminho fora amargurada a vida toda. Tivera um sonho, um único sonho, e nunca o conseguira concretizar, nunca, nem uma única vez, na sua longa vida de 102 anos. Em menina, vira a mãe e as irmãs a conseguir alcançar o que ela não conseguia, depois as amigas, quando se punham bonitas e prendadas para os rapazes. Na sua casa, nunca o conseguira fazer, nem sozinha, nem para o marido e, o que lhe custava mais ao coração, nem para os filhos ao adormecer. Os anos passaram, diziam-lhe que tinha outros dons, outras qualidades, que era tanto e para tantos sem aquilo, que não fazia diferença aos que a amavam. Mas custava-lhe. Para que tinha um sonho se não lhe era possível concretizá-lo? Nunca conseguira cantar, só em sonhos, e tão bem que cantava aí, parecia um rouxinol ao amanhecer. Mas da sua garganta, apenas saia um grasno. Aquela tarde, tinha a certeza, seria a última da sua vida. Então, sem pressas, foi sentar-se no banco que o seu avô construíra junto de um velho salgueiro, plantado pelo
Mensagens recentes

Amanhecer.

O despertador começou a tocar, baixinho, uma música da sua adolescência, dos Pearl Jam. Era uma estação de clássicos, e esta já estava na lista das músicas vintage. Fantástico…  Esta não era a sua cama, nem o seu quarto, e nunca ia meter umas cortinas daquela cor aborrecida, pensou Madalena, enquanto olhava para o gato laranja deitado em cima da sua barriga que a observava como se ela fosse uma peça habitual da casa. Saíra do trabalho no dia anterior aborrecida com a chefe e pronta a mandar tudo pelos ares, mas a engolir o sapo porque precisava do ordenado. Passou pelo supermercado, quase automaticamente, para apanhar os ovos que estavam em falta, e também pão e, quem sabe, umas massas frescas para fazer ao jantar. Simples, com mozzarella, pancetta, folhas frescas de manjericão, como faziam naqueles restaurantes pequenos perdidos no meio da Toscana. Porque é que estavam com promoção dos produtos italianos? Que nervos! Em casa, sentada no banco da cozinha, a olhar para as imagens nas et

Infinito.

Uma, duas, três, quatro, cinco… Contava oito pedras do lugar onde estava, em círculo, rodeadas por um denso manto de árvores, e mais duas pedras no centro. Como um vulto e um altar. Estavam marcadas com símbolos. Espirais e sóis e figuras humanas e animais velozes. Tão fundo na floresta que não se conseguia vislumbrar um trilho para sair dali. Ouvia o marulhar do vento nas árvores, o borbulhar de água não muito distante, e o silêncio. Estariam sozinhos no mundo? Não se conseguia mexer, não conseguia falar, pelos deuses, mal se lembrava sequer do que acontecera na noite passada e de como chegara ali. Que lugar era aquele? Olhou os seus braços, sentindo-os rígidos, e as pernas estavam a deixar de obedecer às suas ordens. Tentou gritar e nenhum som saía da sua garganta. Porque não, se ainda ontem ria e cantava e tinha a voz mais solta do que o costume, ao beber aquela bebida quente e doce que estava a ser passada por todos em redor da fogueira? As labaredas subiram e chegaram aos céus, as

Horizonte

Oiço o guincho de um miúdo e um rosnar brincalhão de um cão. A seguir um pop! Os guinchos tornam-se mais altos. Já sei o que aconteceu. O cão abochanhou a bola e deu cabo dela. O puto ficou sem bola e está ali numa chinfrineira irritante. Bem feita, raios partam a bola. Não é verdade. Não é isto que sinto. Estou só zangado. Zangado com tudo. Com a gritaria do miúdo, com o cão a correr e aos saltos, com o sol, com o vento, com a paisagem tranquila, maldita!, com a vida, com a morte. Com o que me resta da vida. Vou morrer. Soube-o ontem. Não de repente, não de surpresa, mas tenho os dias contados. Sou tão novo, tenho tanto para viver. E já vivi tanto, já curti tanto a vida. Devo ter gasto a dose toda, por isso é que foi encurtada. Agarrei na mala e corri em direcção a um lugar especial, que me faz sentido, uma praia tranquila no Alentejo. Durmo sempre bem no Alentejo, sempre o disse. Olho o céu e vejo um falcão a planar, a disfrutar do vento e da paisagem. Árvores que se estendem pelo ho

Desafios

 Andei entretida com um desafio de escrita interessante, em que nos davam uma instrução e um limite de palavras por semana para escrever um pequeno conto. Era a única escrita que me permitia fazer nestes meses iniciais de 2024, para me dedicar a sério ao segundo semestre. O objectivo era colocar a escrita em pausa até ao Verão, já que o ano anterior e o primeiro semestre foram bastante desafiantes em termos de "meter o Rossio na Rua da Betesga", i.e. multitasking. Assim, a ideia inicial era meter a escrita a um canto, pelo menos até terminar as aulas, com excepção deste desafio e de dois concursos em que tropecei. O desafio terminou, mas o bichinho não se quis meter na gruta para hibernar, o que quer dizer que vou andar entretida com um projecto semelhante, mas aqui no blog. Afinal, não deve custar assim tanto encaixar um conto por semana, não é?...

O Crime na noite de Solstício de Verão - Capítulo 3.

Afinal, não tinha sido a cobra, como diziam por todo o lado na aldeia, reflectiu em voz alta o Inspector Sebastião Lobo, olhando sem ver o pato de borracha que mantinha no cimo do ecrã do seu computador e que o devia ajudar a concentrar-se em momentos de crise. Muitas vezes, o pato ignorava-o, mas hoje dizia-lhe com o olhar que não, ele não tinha razão, o caso não era assim tão simples, e ele estava a querer resolvê-lo sem querer resolver tudo o que estava pendente. Espera, não é o pato, Sebastião! Essas coisas não existem. Como não existem velhas que andam pela aldeia a revelar aos sete ventos informações no segredo da polícia judiciária, que é como quem diz, numa voz rouca e sinistra, meio sibilada. Como é que o raio da velha consegue saber estas coisas? Não sei. Mais um mistério para o infalível Inspector Lobo, conhecido na área pelo seu faro e profissionalismo impecáveis! O que existe é pesquisa, investigação e coordenação dos factos, e isso era o que ele ia fazer. O relóg

O Crime na noite de Solstício de Verão - Capítulo 2.

A Santa tudo sabia, tudo adivinhava. Era a crença mais vincada do povo dos Casais a que a Santa dera o nome, há 500 anos atrás, quando um frade atrevido que andava a tentar espreitar os seios das sereias atrás das rochas, na ilha, a encontrara num nicho meio enterrado na areia, na maré baixa. Frei Tomé esqueceu as sereias, e nunca descobriu que eram mulheres verdadeiras e não sereias, de tão cativado ficou da figura que encontrou, uma estatueta pequena e descorada, com lapas agarradas ao manto azul, mais duas na bochecha, e outra no nariz, não pela beleza da imagem, mas precisamente por constatar que era a Santa mais feia que alguma vez vira, Deus nosso senhor o perdoasse!, com o ar mais enfadado que era possível dar a uma senhora, ainda mais Santa, a criatura que a fizera devia estar nesse momento a arder nas fornalhas do Inferno, ou inspirara-se na imagem da mãe de Frei Tomé, que realmente conseguia apreceber-se das semelhanças. Agachando-se na rocha e esgravatando com as mãos, co