O por do sol, visto do cimo da serra, costumava ser sublime, independentemente do estado meteorológico do dia.
Ontem, as cores tornavam-no mágico.
Quase parecia impossível ter sido apenas ontem.
O vento levantara e as nuvens negras que vinham lá de longe, do mar, chegaram rápidas e densas, misturando os tons de cinza e chumbo com os alaranjados e os rosas.
Era melhor começar a descer, não fosse a chuva chegar, como se adivinhava.
Hoje já não se conseguia ver mais nada na floresta. As sombras e os ruídos que se tinham detectado nestes últimos dias não queriam dar sinal hoje.
Lá em baixo, o autocarro com a última paragem em Montalegre acabara de deixar alguns miúdos, que riam e se empurravam. As aulas ainda estavam leves, e os dias eram luminosos, chegavam com a luz da tarde e pareciam ter mais tempo para tudo.
Uma rajada um pouco mais forte quase lhe arrancou o casaco que levava apoiado nos ombros.
Seria melhor vesti-lo, o tempo estava a ficar mais agreste.
Os miúdos meteram-se pelo caminho da floresta, um atalho para chegar à povoação mais depressa. Hoje não seria um bom dia para isso, estava a escurecer demasiado depressa.
No meio das árvores, viu uma luz, mas depois não tinha a certeza, porque um raio se mostrou quase ao mesmo tempo.
Era a tempestade de que falavam nas notícias. A noite de hoje, e depois mais um dia e uma noite.
Aqui em cima iria cair forte.
Uma bátega atingiu uma das pedras grandes, na descida para a aldeia.
Não iria tardar muito.
Apressou o passo, talvez se conseguisse encontrar com os miúdos. Embrenhados pelo meio das árvores, provavelmente nem se aperceberam da aproximação do temporal.
Estava mesmo a ficar um estado adequado à celebração de sexta-feira 13 que se aproximava, a data que animava os dias habitualmente tranquilos da aldeia de vez em quando e que atraia alguns turistas e excêntricos e curiosos ou apenas alguém que se tinha perdido pelos caminhos da serra.
Mais uns metros e estava lá em baixo. Acelerou o passo, o tempo estava a escurecer, o vento a levantar, e já sentia gotas de água.
Mesmo assim, aqui em baixo, junto às árvores, a visibilidade era muito baixa. Uma névoa começava também a envolver o arvoredo, a descer pelas copas até ao tronco, mais rapidamente do que desejava.
Conseguiu finalmente alcançar a floresta.
Ouvia os miúdos, ainda riam, mas pareciam-lhe longe.
As vozes vinham de vários pontos da floresta. Seria a névoa a dissipar o som, ou estariam perdidos na escuridão?
Um novo raio, e pareceu-lhe ver um vulto à sua direita.
Algo não estava bem.
Ligou a lanterna do telemóvel. Como é que não se tinha lembrado disso?
Chamou para a floresta. Conhecia os miúdos todos. Tinham saído sete do autocarro.
Deviam estar a chegar a este lado.
Não, já deviam ter chegado.
Chamou novamente, mais alto.
De resposta, uma gargalhada, que ecoava pelas árvores.
Ouvem-se passos, alguém se aproximava, mas pelo caminho de fora, o alcatroado.
“Vi os miúdos sair do autocarro e vir pela floresta, mas eles ainda não chegaram.”, disse a mulher de cabelo preso, com algumas madeixas já soltas a esvoaçar em volta do seu rosto.
“O vento está mais forte, não se vê nada, e já está a começar a chover!”, acrescenta, aflita, a outra que vinha com ela, com o avental de gatos.
Mais dois homens se aproximam.
Reconheceu um deles, o velho caseiro do solar. Já não tem idade para andar aqui, mas devia estar no café quando se deu o alvoroço, e não é capaz de ficar quieto, se puder ajudar em alguma coisa.
Novo relâmpago e algo se move entre as árvores.
O ruído do vento é ensurdecedor, há já ramos a estalar, temos de sair daqui depressa.
Onde é que estão os miúdos?
Porque é que não saem deste lado?
Ouve-se um uivo.
Não é um cão, de certeza.
É demasiado forte para ser o de um cão, e está demasiado perto.
Mais telemóveis se levantam com as lanternas acesas.
Alguém tem a coragem de entrar no arvoredo.
É a filha dela que lá está, esta mulher não tem medo de nada. Vejo-a a agarrar num ramo caído com a outra mão. Temo por quem se atrever frente a ela.
Grita pela filha, chama o seu nome, a sua voz ecoa pela névoa.
Outra voz se levanta.
Já não são só os pais, já se juntam vizinhos.
Um trouxe uma lanterna grande e potente, que usa na oficina para ver os motores dos carros.
A escuridão já baixou totalmente, o vento mal nos deixa ouvir uns aos outros e a chuva começou a cair com intensidade.
Não há por onde fugir.
Já nos embrenhámos pela floresta, tentando não nos perder também.
Finalmente, as vozes respondem-nos.
As lanternas apontam para aquele lado, não o do trilho onde estavam.
Algures no meio do arvoredo e da escuridão, perderam o caminho.
Um a um, guiados pelas vozes, começam a surgir os seus vultos.
Um, depois outro, duas raparigas juntas, que choram aflitas e nunca se largaram, e mais outro.
Chegam seis. Falta um.
Gritam por ele.
Não há resposta.
Apontam as lanternas, os ramos parecem sombras a correr no meio das árvores, a esconderem-se atrás dos troncos.
Silêncio, só o vento e a chuva e os trovões cada vez mais frequentes.
Um não aparece.
Chegou a noite, e um não apareceu.

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