terça-feira, 14 de outubro de 2025

O Jardim da Dona Leninha.

 

Dona Leninha adorava cozinhar.

Não, não era verdade.

Dona Leninha detestava cozinhar.

A pessoa que adorava cozinhar estava no passado, tinha sido uma Leninha risonha, cheia de energia luminosa, inspirada, corajosa.

Todos os seus pratos traziam risos e alegria.

Mas essa Leninha já não existia.

Algo no som dos risos lhe provocava agora apenas ruído, irritação.

Azia.

Como se a envenenassem.

Como se tivesse excedido a dose.

Pelo menos, desde que começara a trabalhar no escritório e tinha conhecido o seu namorado, depois marido, depois quase ex-marido enrolado com a secretária, se não tivesse entretanto ficado viúva.

Claro que quando a Menina Filomena passou de assistente de recepção sem qualificações mas com uma altura impressionante de pernas (apesar do também impressionante tamanho do nariz), para secretária pessoal disponível a qualquer hora, e o seu Jorge Miguel achou que “o lugar da sua mulher era na cozinha”, ele não tinha tido em conta, como ela, que os ramos da cicuta são muito parecidos com os do funcho, e cá estamos.

A empresa ficou para o sócio.

A secretária também.

Infelizmente, sofreram um pequeno azar intestinal no fim de semana que foram ao estrangeiro a um congresso.

Felizmente, a mulher dele tinha ficado em outro hotel, por lapso da secretária na marcação das viagens, e não sofreu o mesmo azar, passando até um fim de semana descontraído com piscina, spa e massagista musculoso.

Dona Leninha regressara ao seu posto, depois de uns dias a carpir a viuvez, pobrezinha, tão novinha, pouco mais de 20 anos, um casamento tão curto, onde arquivava papéis por ordem cronológica e alfabética.

Mas as coisas não voltaram a ser as mesmas, agora que voltara a estar sozinha.

Ao final do dia, fazia a pé o pequeno percurso que a levava de volta à sua casa.

Era uma casa antiga, cheia de recantos, com escadas estreitas de madeira e uma cozinha diminuta que dava para um pátio enorme. A casa que pertencera aos sogros e que herdara do seu pobre Jorge Miguel, coitado, que se ficara na cadeira do escritório numa noite em que tivera de trabalhar até mais tarde.

Leninha entrava em casa, obscurecida pelas árvores ainda frondosas que a rodeavam, ia até ao quintal, sentava-se junto às suas plantas, que desde essa altura dominavam o espaço e continuava silenciosa durante alguns minutos, a pensar no seu dia.

O sol já não estava tão forte, mas a sua luz era reconfortante.

Dois gatos da vizinhança aproximaram-se. Deu-lhes uma festa, já eram habitués do quintal e também apreciavam esta tranquilidade de final de dia. A gata tartaruga espreguiçou-se e o gato da papuça branca abriu a boca até ao infinito. Depois, meteram-se os dois no meio das alteias, atrás de uma lagartixa que também aqui viera apanhar sol.

Na verdade, nem um ano tinha passado desde que Jorge Miguel entrara na sua vida, mas esta tinha dado uma reviravolta inesperada.

Antes, era a alegria do escritório, levava os bolos para partilhar, todos a recebiam bem, e até era convidada para os ajuntamentos no café em frente, depois do horário de saída.

Fora assim que o seu Jorge Miguel a cortejara.

Depois, já não a convidavam tanto, mas não se importava. Nem quando o seu Jorge Miguel os acompanhava.

Continuava a ser bem recebida, no entanto, ela e a variedade de bolos e biscoitos que deixava na copa, que ela tinha o cuidado de adequar à época e às particularidades gastronómicas dos colegas, até a Dona Carlota, que tinha mesmo muitas particularidades, um palato exigente, reclamava de todos os bolinhos apesar de os experimentar todos, até ao dia em que adormeceu em cima do computador, teve de ir ao hospital fazer exames e não foi autorizada a voltar à empresa.

Um dia, os seus almoços começaram também a desaparecer.

Os almoços simples que fazia muito cedo na sua cozinha, quando ainda só se ouvia a brisa 

Não tinham nada de especial, não eram nada de exuberante, e eram na pequena quantidade de que ela precisava para se sentir satisfeita.

Não havia motivo para desaparecer uma coisa tão pequena, tão discreta, comida simples com as ervas do seu quintal.

Dona Leninha deixou então de levar a comida para o escritório.

As suas coisas continuavam a desaparecer sem ela se dar conta, e ela não conseguia perceber como.

No último dia, tinha sido o seu preferido, os canelones de espinafres e ricota. A salada com coentros e orégãos e o azeite trufado que fizera no início do Verão, quando ficara as duas semanas de férias sozinha em casa porque o Jorge Miguel afinal tivera de viajar a trabalho para a sucursal do Algarve.

Mas hoje não.

Hoje trouxera dois tabuleiros para partilhar.

Que alegria naquele escritório!
Havia imensa comida.

E bolo de morango e natas batidas para sobremesa!

Foi quando começaram a cair com a cara em cima do chantilly que se aperceberam que estava tudo envenenado com uma dose mortal de beladona.


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