domingo, 28 de abril de 2024

Debaixo da pele do Lobo

Primeira noite de Lua Cheia. O céu estava limpo, e ela iluminava tudo em volta. Na floresta de pinheiros nórdicos com picos de neve alva, um nevoeiro baixo atravessava os troncos das árvores, aqui e ali, como um lago fantasma.
Naquela época obscura, era melhor não se parar durante muito tempo, numa noite silenciosa como esta, neste tipo de lugar, pois as bruxas, os demónios ou os espectros fantasmagóricos podiam aproveitar para se apoderar da alma do caminhante imprudente que se aventurasse nas estradas.
Saindo lentamente detrás de uma árvore, uma figura cinzenta atravessa a luz do luar, por momentos. Houve ainda tempo para vislumbrar dois olhos luminosos e um porte majestoso: era um lobo.
Mas eis que surge uma segunda silhueta. Depois, uma terceira...
Vários lobos, uns negros, outros com várias tonalidades de cinzento, como que surgindo de dentro de cada sombra, assenhoravam-se da clareira, e juntavam-se debaixo da árvore gigantesca que estava num dos lados, tranquilamente, formando um círculo no pequeno espaço à sua frente.
Aos pés da árvore, erguia-se um lobo cinzento-escuro de grande envergadura e olhar feroz.

Imóvel, aguardava que os seus irmãos tomassem lugar.
Finalmente, ergueu os olhos à lua brilhante que os observava no céu lá ao longe e soltou um uivo, longo, lento, poderoso, terrífico.

Os seus irmãos seguiram-no, inspirados pelo seu poder e pela sua força.
Ele era um deles.
Subitamente, sentiu-se um cheiro intenso a mato queimado, demasiado próximo.
A sua natureza meio animal, meio humana fez os seus sentidos apuraram-se e os pêlos no lombo eriçaram-se-lhe. As orelhas procuravam captar ruídos distantes que se aproximavam silenciosos e que formavam um círculo traiçoeiro em redor da alcateia.
Percebera, aterrorizado, que era impossível fugir.
A uma ordem, várias figuras demasiado rápidas para serem humanas surgiram com passos largos e decididos da sombra espessa das árvores e da fluidez da bruma. Alguns puxaram os capuzes para trás e abriram as suas capas, mostrando armas de morte com sede de ser usadas.
Vampiros. Era uma caçada – um jogo do instinto. E os lobos a presa escolhida.
Enoch não teve noção do que se seguiu, de tão confusos se tornaram os movimentos. Teriam passado minutos, horas, ou apenas segundos?
Ficara com os sentidos poderosamente apurados – o cheiro a queimado, o som das labaredas e dos ganidos, o aroma do sangue, a respiração dolorosa. Sentiu dor. Pungente e intensa.
E a única imagem que tem a certeza de ser verdadeira no meio da sequência rápida e nebulosa foi a de uns olhos verdes que se tornavam incandescentes da cor das chamas que os rodeavam, e que se aproximavam cada vez mais dos seus, um sorriso malicioso num rosto perfeito e angelical, com uma aura brilhante, quase branca, de longos cabelos lisos que revolviam lentamente ao sabor do vento estranhamente quente que se levantava dos pés deste homem belo e assustador, unicamente à sua passagem.
Sentiu a carne rasgada por umas garras fortes e o sabor do sangue na garganta, na boca e nos lábios, escorrendo-lhe pelo queixo, que entretanto se transfigurara de um de lobo para um de homem. Sentiu os olhos húmidos e depois uma lágrima quente a deslizar-lhe pela face e a juntar-se ao fio de sangue que escapara pelos lábios.
Viu tudo ao seu redor dissipar-se sob uma luminosidade com vida própria e sentia os uivos agonizantes e as gargalhadas arrepiantes e maldosas muito ao longe a cravarem-se-lhe na própria pele, e teve a certeza que seria para sempre.
Depois foi a escuridão.

Enoch van Heen acordou repentinamente, encharcado em suor, com arrepios de frio, a respiração entrecortada e a vista turva.
Sentou-se lentamente, tentando perceber onde estava. Tacteou no escuro com uma mão, enquanto esfregava os olhos com a outra. O cheiro intenso a palha e a caixotes de madeira despertaram-no um pouco.
O vagão do comboio. Era aí que estava escondido. Fugia. Ou ia em busca de alguém, talvez. A única pessoa que poderia considerar seu amigo e que conhecia o seu segredo.
Recordou vagarosamente o sonho que tivera. Não era um pesadelo, mas uma memória, a mais dolorosa de todas. Fora nessa noite que perdera quem considerava ser a sua família. Todos eles.
Enoch fora o único sobrevivente de um jogo mortal no qual não se inscrevera porque a brutalidade dos ferimentos provocara a transformação que revelara a sua forma original: a de um homem.
Lembrava-se do vampiro que o capturara, Gabriel, líder do bando de assassinos e, por vezes, tinha flashes febris das sessões violentas de tortura e das experiências macabras a que fora submetido. Em todas elas, o sorriso desumano era o mesmo.
Acocorou-se novamente no canto onde estava e fechou os olhos, procurando fazer desaparecer as imagens sucessivas que rodopiavam provocadoras à sua frente.
Respirou fundo e concentrou-se em diminui-las cada vez mais, até elas se diluírem completamente e Enoch conseguir entrar num sono profundo e pesado, sem mais sonhos por aquela noite.




Desafio Semana 17/2024



domingo, 21 de abril de 2024

Voar nas asas do vento

Carminho fora amargurada a vida toda.

Tivera um sonho, um único sonho, e nunca o conseguira concretizar, nunca, nem uma única vez, na sua longa vida de 102 anos.

Em menina, vira a mãe e as irmãs a conseguir alcançar o que ela não conseguia, depois as amigas, quando se punham bonitas e prendadas para os rapazes.

Na sua casa, nunca o conseguira fazer, nem sozinha, nem para o marido e, o que lhe custava mais ao coração, nem para os filhos ao adormecer.

Os anos passaram, diziam-lhe que tinha outros dons, outras qualidades, que era tanto e para tantos sem aquilo, que não fazia diferença aos que a amavam.

Mas custava-lhe. Para que tinha um sonho se não lhe era possível concretizá-lo?

Nunca conseguira cantar, só em sonhos, e tão bem que cantava aí, parecia um rouxinol ao amanhecer.

Mas da sua garganta, apenas saia um grasno.

Aquela tarde, tinha a certeza, seria a última da sua vida.

Então, sem pressas, foi sentar-se no banco que o seu avô construíra junto de um velho salgueiro, plantado pelo pai dele.

O vento passava tão suave entre os ramos, fazendo-os dançar, que não teve medo do que sabia que a esperava.

Talvez se pudesse juntar ao vento e aos ramos, que sonho tão doce.

E cantou, cantou com os pássaros, porque cantou de forma tão límpida e clara, como nunca ouvira cantar, cantou e levantou-se para dançar também, os seus membros tão leves e elásticos, sentia as borboletas a rodopiar no estômago e queria rodopiar com elas.

E levantou voo, rodopiou e cantou, porque já não era ela, a Carminho estava lá em baixo, a dormir debaixo do salgueiro, e ela estava lá no alto, junto aos pássaros, e cantava como eles e era livre.





Desafio Semana 16/2024

domingo, 14 de abril de 2024

Amanhecer.

O despertador começou a tocar, baixinho, uma música da sua adolescência, dos Pearl Jam. Era uma estação de clássicos, e esta já estava na lista das músicas vintage. Fantástico… Esta não era a sua cama, nem o seu quarto, e nunca ia meter umas cortinas daquela cor aborrecida, pensou Madalena, enquanto olhava para o gato laranja deitado em cima da sua barriga que a observava como se ela fosse uma peça habitual da casa. Saíra do trabalho no dia anterior aborrecida com a chefe e pronta a mandar tudo pelos ares, mas a engolir o sapo porque precisava do ordenado. Passou pelo supermercado, quase automaticamente, para apanhar os ovos que estavam em falta, e também pão e, quem sabe, umas massas frescas para fazer ao jantar. Simples, com mozzarella, pancetta, folhas frescas de manjericão, como faziam naqueles restaurantes pequenos perdidos no meio da Toscana. Porque é que estavam com promoção dos produtos italianos? Que nervos! Em casa, sentada no banco da cozinha, a olhar para as imagens nas etiquetas dos produtos, decidiu-se. Não, não se decidiu coisa nenhuma. Na verdade, nem teve consciência de meter na mala meia dúzia de peças de roupa, os documentos, os três primeiros livros da pilha em cima da mesa de cabeceira (ou outros vão ter de ficar para depois, pediu desculpa mentalmente), fechou bem as janelas, olhou em volta, calçou-se e saiu porta fora. Meio minuto antes de desligar o telemóvel, sentada no avião com direcção a Génova, enviou uma mensagem à Patrícia a mandá-la fazer o relatório sozinha, mas com palavras menos simpáticas. Acordou na manhã seguinte no airbnb onde ficara, e saiu para ir tomar o seu primeiro pequeno-almoço verdadeiramente italiano. Com uma bota de cada cor, reparou quando as calçou, mas que se lixe, estava numa aventura!



Desafio Semana 15/2024

domingo, 7 de abril de 2024

Infinito.

Uma, duas, três, quatro, cinco…

Contava oito pedras do lugar onde estava, em círculo, rodeadas por um denso manto de árvores, e mais duas pedras no centro.

Como um vulto e um altar.

Estavam marcadas com símbolos. Espirais e sóis e figuras humanas e animais velozes.

Tão fundo na floresta que não se conseguia vislumbrar um trilho para sair dali.

Ouvia o marulhar do vento nas árvores, o borbulhar de água não muito distante, e o silêncio.

Estariam sozinhos no mundo?

Não se conseguia mexer, não conseguia falar, pelos deuses, mal se lembrava sequer do que acontecera na noite passada e de como chegara ali.

Que lugar era aquele?

Olhou os seus braços, sentindo-os rígidos, e as pernas estavam a deixar de obedecer às suas ordens.

Tentou gritar e nenhum som saía da sua garganta.

Porque não, se ainda ontem ria e cantava e tinha a voz mais solta do que o costume, ao beber aquela bebida quente e doce que estava a ser passada por todos em redor da fogueira?

As labaredas subiram e chegaram aos céus, as vozes cantaram e calaram-se, o ritmo do tambor tornou-se mais intenso e mais rápido. Ou seria o bater do seu coração?

O que é que fizera depois? Dançara. De forma louca, mas centrada, como se o seu corpo soubesse os movimentos da dança sem que tivesse de lho dizer.

O ritmo entrara-lhe nos ouvidos, na voz, no sangue, na alma.

E o que é que dissera?

As palavras vinham-lhe agora à memória, 

queira ser pedra 

queira ser tempo

queira ser eternidade,

as palavras soltas no vento

Tentou gritar, mas a voz não saiu.

Tentou soltar-se, mas o seu corpo não reagiu.

Agora, não passava de uma pedra erguida entre as outras do círculo.




Desafio Semana 14/2024

O castelo na penumbra

Sintra, Novembro de 1827. O vulto do jovem homem de cabelo loiro passou de novo, rapidamente. Desta vez, quase o conseguiu ver pelo canto do...