Carminho fora amargurada a vida toda.
Tivera um sonho, um único sonho, e nunca o conseguira concretizar, nunca, nem uma única vez, na sua longa vida de 102 anos.
Em menina, vira a mãe e as irmãs a conseguir alcançar o que ela não conseguia, depois as amigas, quando se punham bonitas e prendadas para os rapazes.
Na sua casa, nunca o conseguira fazer, nem sozinha, nem para o marido e, o que lhe custava mais ao coração, nem para os filhos ao adormecer.
Os anos passaram, diziam-lhe que tinha outros dons, outras qualidades, que era tanto e para tantos sem aquilo, que não fazia diferença aos que a amavam.
Mas custava-lhe. Para que tinha um sonho se não lhe era possível concretizá-lo?
Nunca conseguira cantar, só em sonhos, e tão bem que cantava aí, parecia um rouxinol ao amanhecer.
Mas da sua garganta, apenas saia um grasno.
Aquela tarde, tinha a certeza, seria a última da sua vida.
Então, sem pressas, foi sentar-se no banco que o seu avô construíra junto de um velho salgueiro, plantado pelo pai dele.
O vento passava tão suave entre os ramos, fazendo-os dançar, que não teve medo do que sabia que a esperava.
Talvez se pudesse juntar ao vento e aos ramos, que sonho tão doce.
E cantou, cantou com os pássaros, porque cantou de forma tão límpida e clara, como nunca ouvira cantar, cantou e levantou-se para dançar também, os seus membros tão leves e elásticos, sentia as borboletas a rodopiar no estômago e queria rodopiar com elas.
E levantou voo, rodopiou e cantou, porque já não era ela, a Carminho estava lá em baixo, a dormir debaixo do salgueiro, e ela estava lá no alto, junto aos pássaros, e cantava como eles e era livre.
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