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A Devoradora de Corações - Epílogo.


Celestes

A Irmã Generosa, pelas mãos de Leonor, acrescentou mais um parágrafo no caderno onde apontava as suas receitas e as suas notas, deitando um olho ao tacho de cobre onde a fruta se tornava numa papa doce e borbulhante, enquanto se recordava da sequência dos acontecimentos dos últimos dias.
O encerrar do convento antigo, entre comoção e saudade, a mudança para o lugar novo, com mais ou menos entusiasmo, independentemente das idades, com a estranha doença da pequena Maria dos Anjos que se arrastou por estes dias e, finalmente, na noite passada, a assustadora e tremenda tempestade e a destruição completa do muro do claustro sul pela subida das águas do ribeiro, de repente tão violentas e incontroláveis, que arrastou com ele o claustro onde se passeavam tranquilamente em dias de sol e de chuva e de todo o edifício onde antes dormiam as irmãs, que inevitavelmente teriam ficado sem vida debaixo dos escombros, em vez de estar a despertar numa manhã de sol luminosa em camas igualmente frescas e lavadas, um pouco mais acima na colina, de onde podiam ver o pinhal mais ao fundo e as clareiras de malmequeres.
Era um pouco mais complicado fazer as coisas, agora, mas seria uma questão de tempo até se habituarem, uma e outra: a Irmã Generosa a ver as suas mãos nas mãos de Leonor, a treinar os gestos antes tão habituais, a partilhar os seus pensamentos, a ter à sua volta a calma sempre presente do olhar de Henrique, a aproximar-se suavemente quando a percebia mais focada e absorta nos seus afazeres na cozinha.
Não podia ter pedido aos céus um presente melhor do que a Irmã Piedade para continuar o seu trabalho na cozinha. A ela deixara o seu caderno de cozinha, e a todas as mestras da cozinha do convento que se seguissem, o que arreliara um pouco a Imaculada, ela vira, lá do tecto da capela, onde velara o próprio velório, mas Imaculada ficara apaziguada ao receber um caderno só das duas, construído com amor durante todos estes anos, sem que ninguém o soubesse, nem a alma mais igual à sua, a sua marca única, as receitas e as ervas, Generosa e Imaculada, como sempre haviam sido uma com a outra, sem segredos, irmãs de hábito e de coração.
A marmelada estaria em breve pronta, a segunda receita na cozinha nova do novo convento, uma receita para apaziguar o espírito e o corpo.
Agora era Leonor quem fechava o caderno e respirava fundo, sentindo o espírito de Generosa a afastar-se e a tornar-se mais ténue, indo, quem sabe, na direcção do horto, desta vez. Leonor sorriu a este pensamento.
Ocorreu-lhe que a anterior cozinheira iria detestar o aspecto impessoal e impecável daquela cozinha acabada de estrear.
Não a limpeza em si; a cozinha de Generosa sempre fora limpa e organizada, mas a esta faltava o toque de uso e personalidade de que ela gostava, as colheres de madeira vindas do seu enxoval, a travessa oferecida pelo próprio rei para servir o manjar real em dia de festa, o tacho de barro com a asa partida que tinha sobrevivido assim quase inteiro a uma brincadeira na ceia de Natal há tantos anos atrás.
Sim, a vida aqui estava renovada, como renascida, assim como o convento.
Leonor precisou destas paredes novas para perceber que há coisas boas que vêm com a mudança, com o fim de outras coisas.
É necessário guardar algumas, mas também é preciso largar a mão de outras e de as deixar voar em direcção ao nosso passado.
Colocou um pouco da sua canja de galinha acabada de fazer numa gamela de barro, com a colher de madeira de nogueira que viera no enxoval de Generosa há muito tempo atrás.
Com o carinho com que sempre o fizera, retirou duas folhas de hortelã do molho fresco que Imaculada lhe trouxera para a ocasião.
Pensou na hortelã, símbolo das coisas passadas, pois Imaculada havia caminhado até ao convento antigo para a ir apanhar, símbolo da sua união, porque todas quiseram dar um pouco de si para a recuperação da sua pequena doente.
Pensou no seu amor perdido e agradeceu ter tido a oportunidade de cozinhar para ele, de cozinhar este prato, simples que era, e o seu preferido, e esse pensamento trazia-lhe um sorriso aos lábios e calor ao coração.
Mas, agora, o seu coração estava virado para as surpresas do futuro, e a sua canja era agora um caldo de vida, com um toque do passado, servido entre rosas e bordados de pássaros a uma criança que também acordara de um violento tormento renascida para a vida num lugar novo, depois de uma noite de tempestade e destruição que teria reclamado a vida de todas se tivessem ficado no convento antigo mais um dia.
Apenas uma delas decidira obstinadamente não acordar no novo convento, apesar de se ter deitado na sua cama nova, na sua cela nova, onde tivera de admitir que gostava bastante da vista da janela, e depois de se ter despedido tranquilamente de todas as companheiras, mas cujo espírito, Leonor sabia, se iria manter junto delas durante uns tempos.
Tinha sido a união de todas elas que as salvara, e o amor que sentiam umas pelas outras não poderia nunca mais ser derrubado.




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