quinta-feira, 20 de junho de 2019

O Crime na noite de Solstício de Verão.

Prólogo.

A noite era perfeita. A lua cheia brilhava num céu limpo, o aroma das ervas silvestres apanhadas recentemente nos campos era mais intenso com a noite, depois de um dia de calor pesado. O cheiro das fogueiras do solstício subia pela brisa quente que se levantara ao pôr-do-sol, arrastando pesadas nuvens ao longe, numa ameaça de tempestade para as horas densas da madrugada.
Uma noite perfeita para mistérios, bruxaria improvisada e aparições fantasmagóricas, assim o pensava um grupo de adolescentes que se dirigia, de forma meio séria, meio de brincadeira e com umas pitadas da irreverência típica, ao cimo da falésia, sob a inspiradora lua cheia, perto da meia-noite, para chamar do além o espírito do moleiro, na sua noite, para fazer justiça aos vivos ou, pelo menos, para ver se os rituais do livro de feitiços da tia-avó da Teresinha e avó do Bruno resultavam.
Apenas alguns corajosos se aventuraram: a Teresinha, a Mónica, a Marta, o Miguel, o Filipe, o Bruno, colegas do liceu, na cidade, e a Patrícia, irmã mais nova do Filipe. Sete, o número mágico requerido. Havia velas, coroas com flores da época, bolos de mel, pentagramas, capas escuras, unhas pintadas de preto, um isqueiro e um maço de tabaco roubados ao pai e, sabe-se lá porquê, um livro do Paulo Coelho numa mala de pano a tiracolo com padrão de gatinhos.
Dizia a lenda que, na noite de Lua Cheia do Solstício de Verão, à meia-noite, o moleiro havia saído do seu moínho e caído na falésia poucos metros à frente. O corpo nunca fora encontrado, preso nas rochas lá em baixo, ou arrastado pela corrente para o fundo. A alma, dizia-se, estava perdida, à procura do corpo que não vira desaparecer e que, em noites destas, se evocada da forma certa por alguém intrépido o suficiente para sair da aldeia, subir a colina até à ruína da Porta do Moinho à beira da falésia, aparecia a revelar mistérios e a desafiar a coragem do atrevido.
A lenda não dizia que havia de ser com as ervas mágicas do livro, nem com as velas das cores do Solstício acesas num pentagrama desenhado na areia sobre o qual um grupo de adolescentes formava um círculo, de mãos dadas, a trocar olhares de uma maturidade pouco habitual e com algumas risadinhas pelo meio, mas o livro dizia, e era por aí que eles se guiavam.
A brisa levantou um pouco mais, e depois com mais intensidade, de forma repentina, alvoroçou as capas e os cabelos e apagou todas as velas excepto uma, a do centro, como que arrastando as chamas para a balaustrada de pedra à beira da falésia.
Da Casa da Bruxa, no outro lado da estrada, ouviu-se o gemido do vento a passar nas telhas, como se o buraco não tivesse sido arranjado há mais de cinco anos, e um silvo súbito atrás deles quebrou a vibração do vento, sobressaltando os jovens.
Da direcção da falésia, um vulto negro e alto gemia e cambaleava à luz da lua cheia.
Fosse verdade ou não, ninguém quis saber se o espírito do moleiro havia sido libertado para vir fazer justiça pelas suas mãos sedentas, e bastou um olhar trocado entre os amigos para decidir que a opção mais acertada seria correr pela colina abaixo a toda a velocidade, em direcção a porto seguro, uma risada medonha a soar atrás deles enquanto corriam pelas suas vidas e pelas suas almas.
A chuva forte que caiu na madrugada limpou quase todos os vestígios do ritual, e deixou a descoberto o corpo do Dr. Melo lá em baixo, preso entre duas rochas, as pernas a mover-se com a ondulação, o olhar espantado de quem não esperava receber a morte nos braços nessa noite.

“Liberdade”, uma voz dizia baixinho para o vento, ao bater a meia-noite na capelinha lá em baixo na aldeia, no momento em que a decisão que tomara se tornava na única opção.
“Finalmente liberdade!”, sussurrava ao mar enquanto via a decepção no olhar em frente a si e o corpo a cambalear com a surpresa e a dor da pequena bala no abdómen, suficientemente perto da falésia para se desequilibrar e cair no abismo da escuridão.
“Será mesmo a liberdade?”, uma semente de dúvida instalou-se no fundo da mente de quem empunhava a arma diminuta com um silenciador encaixado; talvez a bala tenha sido desnecessária, uma queda acidental ou duvidosa não iria gerar questões.
Um sorriso acalmou o coração. As questões que a bala iria despertar eram perfeitas para o plano resultar.
A gargalhada presa na garganta pela tensão do momento libertou-se na brisa que corria mais rápida, voando atrás dos calcanhares dos jovens, um dos quais corajoso o suficiente para virar a cabeça e olhar o espírito desafiador dono de uma risada que lhe soava familiar.



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