quarta-feira, 1 de maio de 2019

A Devoradora de Corações - 6

Aletria Doce

A minha companheira de cela, aqui, é a Irmã Maria da Luz. Luz no nome, escuridão no fundo da alma, eu sei, apesar de ela ter esse segredo guardado bem no fundo do coração.
Ela teve uma vida fora daqui, há muito tempo atrás. Teve um marido, que a estimava, mas que desistiu dela. Teve uma filha, um bebé lindo, as mãos pequeninas, o rosto perfeito, mas que nunca abriu os olhos. Era uma menina e, se tivesse nascido viva, teria por agora a mesma idade que eu. Creio ser esse o motivo que a faz olhar para mim pensativamente. Será que a sua filha teria cabelos castanhos como os seus? Seriam lisos? E os olhos? Seriam risonhos? Teria sido uma rapariga feliz? 
Não foi ela quem mo contou, nem nenhuma das outras irmãs, que ninguém conhece o seu segredo, mas um dos anjos que guarda este convento.
Ele diz-me que não tenha medo, que nos acompanha até ao convento novo, e que vai continuar connosco, e será como se não tivesse havido mudança nenhuma.
Diz-me que quase morro, mas que o amor que esta minha irmã me tem é amor de mãe, porque eu sou a sua filha perdida e ela é a minha mãe perdida, e que é o nosso reencontro que nos salva às duas.
E eu acredito nele, que nunca me mentiu.
Eu tive uma mãe, mas não era mãe, apenas me colocou no mundo.
E tive uma avó, que me dava colo e carinho, mas não foi por muito tempo.
Eu não me lembro, porque era muito pequena, mas guardo a sensação do seu colo.
Foi o anjo que me contou, e eu recordei-me.
Quando era quase um bebé, devia ter uns três anos, gostava de brincar na pequena floresta que me parecia o nosso jardim. Escondia-me entre os arbustos e procurava fadas. Conversava com pássaros e coelhos. Muitas vezes, fugia do quarto onde estava com a ama e vinha procurar os meus amigos.
Num desses passeios, fui dar à capela, onde estava uma caixa grande, com uma pessoa lá dentro deitada, sem se mexer.
Vi o lenço da avó e chamei por ela. Como não me respondeu, cheguei-me mais perto. Estiquei-me, porque era baixa, e consegui tocar-lhe na cara. Era a avó, mas estava tão fria e quieta, quando habitualmente era quente, que tive medo e assustei-me. Chamei por ela, mas não me respondeu, nem sequer se mexeu. Gritei mais alto, puxei-lhe pelo braço, desequilibrei-me, mas a avó não me segurou, antes caiu em cima de mim, soltou-se a fita que tinha na cara e abriu uma boca com uma língua que me meteu medo.
Urinei a roupa que a mamã tinha escolhido e fugi para longe, para tão longe, não para a minha árvore preferida, porque a avó sabia qual era, mas para uma mais distante. Tapei a cara e não quis ver nada, mas quando fechava os olhos só via a boca aberta e a língua de fora, como que a tentar comer-me.
Só me encontraram de noite, ninguém soube o que aconteceu, fiquei doente durante muitos dias, tive febres e pesadelos e chorava e gritava durante o sono, como faço agora mas, um dia, acordei, e não me lembrei de nada.
Foi a partir desse dia que comecei a ver anjos e eles começaram a falar comigo.
Os meus papás ficaram muito aflitos comigo e, um dia, trouxeram-me para este lugar.
Eu gostei, porque era tranquilo, e as minhas febres e prostrações deixaram de ser tão fortes, e passaram a acontecer muito poucas vezes. Já não passava dias de cama, com delírios e suores, e os anjos já não pediam tantas vezes que não comesse as minhas refeições, porque neste lugar, a comida é de Deus e não me pode fazer mal à alma.
Gostei porque encontrei a minha mãe perdida e ela me deu o amor que me salvou, mesmo agora que estou numa cama de olhos fechados e sem se perceber que respiro, eu sei que ela está do meu lado, que me segura e beija as mãos, e que fala junto do meu ouvido as coisas que fazem no convento, que a Irmã Piedade está a fazer uma canja que me vai saber aos céus, que a Irmã Imaculada foi buscar as rosas de que eu gosto ao jardim do convento antigo, que a Irmã Maria do Céu está a bordar uma colcha com pássaros para a minha cama, que a Irmã Áurea pintou de branco a minha cadeira e que lhe desenhou pequenas rosas, que a Irmã Generosa já não está entre nós mas que morreu em paz e sem sofrimento, mas isso já eu sei, porque o anjo me contou.
Gostei porque não sabia o que era o amor de uma mãe, mas agora que sei já não quero deixar este mundo, e o anjo diz-me “dá-me a mão e caminha, que eu levo-te à tua mãe”, e eu dou-lhe a mão e caminho com ele, porque nunca me mentiu, e quando acordo tenho um sorriso nos lábios porque estou nos braços da minha mãe.



Sem comentários:

Enviar um comentário

O castelo na penumbra

Sintra, Novembro de 1827. O vulto do jovem homem de cabelo loiro passou de novo, rapidamente. Desta vez, quase o conseguiu ver pelo canto do...