Avançar para o conteúdo principal

A Devoradora de Corações - 5.


Bocas de dama.


Uma hipótese seria fugir do convento. Era tão fácil, para mim, que já fugi tantas vezes.
Dos lugares, das pessoas, das decisões.
Sim, seria fácil demais, e não é isso que quero agora.
Bastaria um olhar, e Samuel teria coragem de atravessar o que restava do muro meio destruído.
Qualquer aproximação maior que esta era perigosa, e isso já eu o sabia.
Muitos anos de corações despedaçados ensinaram-me que não há melhor companheiro para uma pessoa como eu do que a solidão.
Houve uma altura, por breves momentos, em que julguei que fosse possível buscar companhia, um parceiro, um cúmplice, mas a culpa era algo que exigia demasiada energia, e acabei por desistir da ideia.
Finalmente, encontrei o lugar perfeito, e julgava-me, quem sabe, salva dos meus próprios demónios; mas não, penso que isso não seja possível, pois até aqui, neste sítio que escolhi, neste refúgio para o alvoroço do meu coração, eles me perseguem e encontram, e continuo a esforçar-me por olhar nos olhos e ver as almas das pessoas, mas o que vejo, única e apenas, são os seus corações palpitantes de dramas e de anseios, e a minha cada vez mais descontrolada voracidade.
Percebam que eu não estou aqui por vocação. Quase nenhuma de nós está, na verdade, com pecados mais pesados, ou mais leves, estamos aqui devido à nossa singela condição de mulher.
Algumas como que encarceradas em vida, com desejos, vontades e opiniões que não se encaixam na sociedade onde vivemos e que são tidos como escandalosos, mas a maioria de nós refugiadas dessas lutas onde nunca a vitória é nossa, resguardadas dos homens, dos medos, dos pecados.
Da vida.
Mas, desta vez, só desta vez, decido não fugir.
A pequenina está doente e, tenho de o admitir, toca-me ao coração. A mim, que não o tenho. Não posso abandonar as minhas irmãs, nem por causa de um par de olhos que promete saciar toda a fome que trago neste buraco do peito.
        Não o quero. 
Deixo-me antes devorar pelo meu coração, em vez que procurar devorar outros.
Por uma vez, há que admitir a derrota.
E é tão libertadora!


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Horizonte

Oiço o guincho de um miúdo e um rosnar brincalhão de um cão. A seguir um pop! Os guinchos tornam-se mais altos. Já sei o que aconteceu. O cão abochanhou a bola e deu cabo dela. O puto ficou sem bola e está ali numa chinfrineira irritante. Bem feita, raios partam a bola. Não é verdade. Não é isto que sinto. Estou só zangado. Zangado com tudo. Com a gritaria do miúdo, com o cão a correr e aos saltos, com o sol, com o vento, com a paisagem tranquila, maldita!, com a vida, com a morte. Com o que me resta da vida. Vou morrer. Soube-o ontem. Não de repente, não de surpresa, mas tenho os dias contados. Sou tão novo, tenho tanto para viver. E já vivi tanto, já curti tanto a vida. Devo ter gasto a dose toda, por isso é que foi encurtada. Agarrei na mala e corri em direcção a um lugar especial, que me faz sentido, uma praia tranquila no Alentejo. Durmo sempre bem no Alentejo, sempre o disse. Olho o céu e vejo um falcão a planar, a disfrutar do vento e da paisagem. Árvores que se estendem pelo ho

O Crime na noite de Solstício de Verão - Capítulo 3.

Afinal, não tinha sido a cobra, como diziam por todo o lado na aldeia, reflectiu em voz alta o Inspector Sebastião Lobo, olhando sem ver o pato de borracha que mantinha no cimo do ecrã do seu computador e que o devia ajudar a concentrar-se em momentos de crise. Muitas vezes, o pato ignorava-o, mas hoje dizia-lhe com o olhar que não, ele não tinha razão, o caso não era assim tão simples, e ele estava a querer resolvê-lo sem querer resolver tudo o que estava pendente. Espera, não é o pato, Sebastião! Essas coisas não existem. Como não existem velhas que andam pela aldeia a revelar aos sete ventos informações no segredo da polícia judiciária, que é como quem diz, numa voz rouca e sinistra, meio sibilada. Como é que o raio da velha consegue saber estas coisas? Não sei. Mais um mistério para o infalível Inspector Lobo, conhecido na área pelo seu faro e profissionalismo impecáveis! O que existe é pesquisa, investigação e coordenação dos factos, e isso era o que ele ia fazer. O relóg

O Crime na noite de Solstício de Verão - Capítulo 1.

D. Aldegundes sabia que algo estranho se passava. Chamem-lhe sabedoria, instinto, experiência de vida, sinais do Universo, mensagens do Anjo da Guarda ou de algum antepassado do Além, o que seja. Percebeu isso ainda antes de acordar quando estava naquele sono da madrugada, já não tão profundo, mas um pouco antes do despertar, o que nos revela segredos ocultos e destinos incertos, como tinha visto no outro dia no programa do Sr. Goucha, que homem tão sábio, tão masculino, com aquele fato, que bigode tão excitante, que calores que lhe davam ao peito, só de pensar nele já ficava com palpitações, pobre do seu Abílio, Deus o tenha, se soubesse! Enfim, esse sonho trouxe uma recordação, uma noite de Solstício há muitos anos atrás, ainda era ela uma menina de 17 anos, que ela não era velha mas, enfim, os cabelos brancos… com a permanente da moda, claro!, as fogueiras acesas na beira da praia, junto à azenha, numa noite de lua cheia, limpa, mas a que uma suave brisa trazia a ameaç