sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Odisseia do Tacho 2006 - CAPÍTULO 8 – “NÃO VÁS AO MAR, TÓINO...”

Hoje, mais uma vez, é dia de arraial na Cadriceira!
Todos os últimos fins-de-semana de Setembro, mais coisa menos coisa, dependendo de como correram as coisas na procissão e do número de habitantes da aldeia ainda com capacidade de andar, desde há 22 anos para cá (ou seja, começou como uma celebração algo tardia do 25 se Abril de 1974...), procede-se ao chamado “Carnaval de Fim da Colheitas”, que se celebra... precisamente... depois de acabar a apanha das peras, das maçãs e da vindima nas pequenas hortas dos habitantes da aldeia.
A preparação desta festa, que começa com o desfile planeado e interpretado pelos habitantes, e que é seguido da actuação do Rancho Folclórico da Sociedade Recreativa da Cadriceira e por um arraial festivo no parque de merendas junto da mesma, é mantida por todos no mais completo segredo, uma vez que toda a gente quer surpreender o seu vizinho.
Por vezes, as festas são tão vistosas, que aparecem até nos jornais das cidades e vilas em redor. ...regra geral, por causa do desastroso aparato do fogo de artifício nas mãos do R.J., o Fanhoso atestado de sangria, pelas serubas algo ilegais do Índio George, ou pelo elevado número de pessoas que vai passar uns dias ao hospital mais próximo, depois da participação nas diversas modalidades da festa.
Na véspera do Carnaval, o ambiente geral é de grande tensão – Maria Odete previra a queda de um muro em Berlim e a do Fidel Castro ao mesmo tempo que despejara metade do frasco de gindungo angolano na caldeirada, o que coloriu alegremente a vida das pessoas que foram almoçar à Sociedade Recreativa nesse dia, enquanto a sua irmã gémea, Odete Maria, carregou demasiado uma pequena máquina de eléctrodos para uso doméstico e acabou por ter de mandar um guarda Arnaldo de tutu algo aflito e afogueado para Centro de Saúde de urgência.
Toda a gente sentia os nervos à flor da pele...

Já refeito do susto, mas ainda não totalmente convencido, o Bruno do talho apura a voz no dueto com a D. Adélia, que não se cansa de lançar olhares ardentes e insinuantes ao pensionista do andarilho, o exímio tocador de ferrinhos no rancho. Por via das dúvidas, o Bruno trouxe a faca do entrecosto, que esconde entre as folhas com as letras das músicas do ensaio dessa tarde...

Às 6h em ponto arranca o desfile de máscaras e disfarces, que até correu de feição, o que se deveu ao facto de ser a primeira parte da celebração e de ainda estar toda a gente algo nervosa. A partir do meio do desfile – ou seja, à passagem pelo edifício da Sociedade Recreativa – é que as coisas começaram a desviar-se do seu centro, e as pessoas a encaminhar-se decididamente ao lugar habitual... onde começou logo ali, sem qualquer cerimónia, a parte final da festa misturada com o arraial e a actuação do Rancho...
Entretanto, chegou o Valentim, irmão da Joaninha das Autópsias e do Cláudio, o Gótico, viciado em vacadas, que saiu do hospital, onde foi passar a noite (com o relatório clínico de coma alcoólico e de duas costelas partidas), ainda meio bambo, depois de lá ter ido parar por ter ido para a largada na festa da Ordasqueira com uma grande tosga e de ter levado uma marrada de uma bezerra, e que está a pensar em ir outra vez, depois de meter para dentro uns dois ou três bagaços, para ver se ainda apanha a parte das vacas bravas...
Mas a festa até estava agradável e o Valentim lá foi vestir a primeira coisa que lhe passou pelas mãos – que foi um disfarce de mulher fácil, com o seu sempre presente telemóvel pendurado ao pescoço... - e depois de andar a tarde toda a beber uns shots experimentais do Índio George, acabou por se fazer ao António Luís que, provavelmente por lhe ter feito companhia nos shots, não se apercebeu da cabeleira longa de caracóis louros meio caída para trás, de uma mama obviamente mais abaixo que a outra, da barba de 4 dias... e nem do bocado de caldo verde ainda pendente do seu basto bigode à moda do Chalana.
Já o incorruptível guarda Januário andava a fazer a ronda – sim, que ele nunca perdera o hábito – armado com a sua caçadeira de dois canos alterada e com os seus poderosos cartuchos de fabrico artesanal – que há alterações que ele gostaria de incluir na profissão mas que não o deixaram, pelo que ele aproveita a reforma para as fazer – e já com um nível de imperial demasiado elevado no sangue para o que seria desejável – porque há hábitos que se criam... – quando dá com o Cláudio agarrado a uma bilha de Petromax, com um saco de plástico numa montagem que lhe provoca umas risadas parvas a ele e ao espanhol, enquanto o cão Piruças se mantém hirto e com uma firmeza de tropa ao pé do seu dono, já com os chinelos de Fonseca nos dentes, e o Ricardão da oficina a ensinar a Giséla Sóráia a apanhar moscas com os pauzinhos chineses...
E a noite acaba com todos a comer uma travessa gigantesca de peixe frito feita pela Maria Odete, que está inspirada e até de bom humor, pelo que, uma vez que não tem vontade de matar ninguém, até lhes faz este mimo, e sem ninguém se encanitar com o vizinho do lado, o que traz alguma variedade às festas da terra.



(Semana 5 de 2025)

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Odisseia do Tacho 2006 - CAPÍTULO 7 – SEXTA FEIRA 13

Uma escuridão profunda e húmida – era tudo o que a vista do Bruno alcançava naquele momento.
Ainda meio atordoado por causa da dose excessiva de sangria e Brandymel da noite anterior e por ter tropeçado em sabe-se lá o quê, ao Bruno do Talho parecia-lhe ainda ouvir a voz de soprano do Cláudio, o gótico, a ecoar estridentemente no seu cérebro.
Talvez fosse melhor voltar a adormecer...

------------------------

O amanhecer surgiu, límpido e luminoso, pelo quintal da Maria dos Prazeres dentro. Enquanto a pensionista apanhava, distraída, uns figos gordos e venenosamente doces para o pequeno-almoço, não reparou no seu marido, o guarda Januário, que corria porta fora com um televisor a arder refugiado nos seus braços...
... e nem no espanhol encostado ao pessegueiro com uma garrafa de 1920 vazia nas mãos e uma de Macieira entre as pernas, nem no Cláudio adormecido encostado à Floribella, a cabra que gostava que lhe dessem alfarroba à boca, que isto as sobrinhas é que lhe escolheram o nome para a bichinha, nem no R.J., o Fanhoso caído de cara entre as alfaces, nem no António Luís enrolado no canteiro dos tomateiros... e nem numa das botas do Bruno caída junto ao poço aberto...

-----------------------

Eram já 4 da tarde quando o guarda Arnaldo saiu debaixo do tanque, onde se refugiara, para a sua mãe não dar com ele. É que seria demasiado humilhante para a sua condição de agente da autoridade ser apanhado bêbado e levar uma sova em frente dos amigos... isto se o pai não se apercebesse...
Se o guarda Januário adivinhasse que o seu perfeito e incorruptível filho único andava para aí a gastar a juventude em bebedeiras, era bem capaz de lhe arranjar uma nova casa... no cemitério...
Sim, porque o guarda Januário, que já não era agente da ordem coisa nenhuma, era um reformado que se entretia com a horta e com o seu macabro hobby.
O guarda Januário, viajado em muitas missões de risco e com uma folha de serviços brilhante e inspiradora, era tarado por armas e afins.
O sótão da casa estava atafulhado de coisas assustadoras como carabinas experimentais, bazucas duvidosas trazidas por amigos ainda mais duvidosos, lança-chamas, magnuns (e não são os gelados, garanto-vos!!), e uma autêntica fábrica de produção de cartuchos caseiros!
A preocupação desviante com a segurança inspirou-o até a encher todas as janelas da casa com grades de prisão de alta segurança. Daí o seu problema com a televisão. Que coisa melhor para uma televisão que faz curto-circuito e entra em chamas, do que uma janela aberta mesmo ali à mão??
Foi então que deu conta da bota ao pé do poço... e previu o pior!!
...sim, era o que ele pensava – o Bruno tinha caído ao velho poço, baixo, não mais que a altura da Maria Vieira, e com meio palmo de água, nos dias de hoje, quiçá numa tentativa de se esquivar da D. Adélia, ignorando o seu escaldante e geriático romance com o pensionista do andarilho.
O guarda Arnaldo, sabendo que não era possível descalçar aquela bota sozinho (passe a expressão...), chamou por socorro, e logo ali foi atendido – por quem ainda estava caído pelos cantos do jardim, pelo Índio George e pelo Ricardão da oficina que saíram esgazeados de dentro da barraca das ferragens a segurar as calças com uma mão e com o outro braço no ar,… e pelo guarda Januário, que alvitrou logo: “Vamos fazer uma investigação!”... que não foi muito longa, pois percebeu-se logo onde estava o Bruno.
A questão agora era como o fazer sair... pois, porque ele ferrou pé e não havia quem o convencesse a espreitar cá para fora...
Choveram sugestões de todo o lado, que foram prontamente postas em prática – menos a ideia do vingativo espanhol, que queria fazê-lo sair com fumo, acendendo uma fogueira no carrinho de mão e atirando tudo para dentro do poço, certamente ainda não esquecido da atenção da Joaninha, que tinha de partilhar com a vítima.
Com isto tudo já eram quase 9 da noite e ninguém metia nada para o estômago desde a noite anterior, excepto o guarda Januário, que tinha ficado com soltura o dia todo por causa de uns figos que comera ao pequeno-almoço e, a esta altura do campeonato, já temos lá em baixo, além do Bruno, o R.J., o guarda Arnaldo, o Xavi Fuentes, o Ricardão, o Índio George, o António Luís, o guarda Januário, duas cordas, um escadote de madeira, uma caçadeira de dois canos, um estojo de primeiros socorros e a Débora vestida de enfermeira de mini-saia, enquanto a D. Maria dos Prazeres está calmamente sentada no alpendre a ler o “Código de Avintes” com o gato Gatilho aos pés.
E, desta vez, quem salva a situação, é a Giséla Sóráia, que lembra que podem chamar os Bombeiros.
E foram todos jantar chocos fritos à casa da Maria Odete!!





Semana 4 de 2025

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Odisseia do Tacho 2006 - CAPÍTULO 6 – QUEM MORA AO LADO

Aviso à navegação que ainda aqui anda perdida em 2025:

Andava para aqui em arrumações e percebi que a Odisseia do Tacho, que tinha estreado no blog em 2006 (a primeira blog-novela, mas não a última, porque fiz mais outras…) e que ficou arrumada em 2009, quando o desliguei (requiescat in pace), ainda não estava na sua totalidade aqui, no blog ressuscitado.

Assim, para variar um bocado destas destas ideias doidas que me passam pela cabeça no meio do Inverno, vou meter aqui os restantes episódios (em suaves prestações), sem edições, acrescentos, alterações ou actualizações à época em que vivemos, uma coisa que podemos considerar “vintage”, ou “isto agora era tudo censurado” (muito, mas mesmo muito provavelmente), ou “nesta altura eu não tinha filhos, e muito menos juízo” (espera, também ainda não tenho juízo).

Nesta altura, também tinham muito mais tempo para escrever, porque levava com umas quantas horas de CP do Cartaxo (essa metrópole alcoólica) para Lisboa (basicamente turistas e imperiais) e vice-versa, mais um mini-autocarro cheio de pensionistas animadas e à beira da morte e cheias de enfermidades ao mesmo tempo, de Santa Apolónia para a Graça e vice-versa, e agora, valha-nos Deus, ando com o caderno cheio de post-its amarelos lá do trabalho e escrevo enquanto estou à espera que acabe a aula de natação ou um evento qualquer da agitada vida social dos meus filhos (muito mais borbulhante que a minha).

Por isso, considerem-se avisados, e divirtam-se!

Afinal, talvez tenham de levar com histórias mais desorientadas da caixa dos parafusos do que o habitual, mas é o que temos.



CAPÍTULO 6 – QUEM MORA AO LADO


Noite de Lua Cheia na Cadriceira.
Ao longe, ouve-se o uivo solitário de um cão vadio.
O edifício da Sociedade Recreativa flutua na escuridão...
...sim, depois de varrerem uma tachada de pipis feita pela mão habilidosa do Índio George (...pois...), acompanhada de pão caseiro quente a sair do forno e umas imperiais frescas à maneira, a malta pesada da Cadriceira aproveitou este momento de calmaria para ver o filme “I’ll see you in my dreams”, trazido pelo Cláudio, o gótico, irmão da Joaninha das Autópsias, um rapaz magricela, que usa aquelas calças pretas esterlicadas, vive de noite e pensa que é vampiro. A sua carapinha acentuadamente MarcoPauliana é que não é da mesma opinião, infelizmente...
Ora estava já toda a gente assim meio acagaçada e atenta ao mínimo ruído ou movimento, que se tornavam mais evidentes com os singelos cálices de Vinho do Porto que já tinham entrado nos organismos, quando o Índio George aproveita para ir com o Ricardão da oficina, que come tudo o que mexe, é uma fatalidade, enroscar-se carinhosamente para o wc de serviço.
Eis senão quando vêm os dois a correr lá de dentro, esbaforidos e de calças na mão, perseguidos por uma criatura negra de olhos brilhantes a alta velocidade e a grunhir de forma furiosa... era Eusébio, o suíno Triturador-Aspirador, que fugiu de forma misteriosa da sua barraca no quintal dos pais do guarda Arnaldo, onde estava a ser vigorosamente engordado para uma valente patuscada, e que provoca um monumental cagaço em quem estava na sombria sala da Sociedade Recreativa...
Completamente transtornado, a fugir do edifício pela porta principal a correr à frente da D. Adélia como se tivesse o Encapuçado da Gadanha atrás dele de patins em linha, o Bruno do Talho vomita mesmo em cima dos pés do Júlio Cangalheiro, que ia a entrar acompanhado da Tatiana, da Irina e da Neide Elizete.
O Xavi Fuentes, que mora perto e que já vê tudo a andar à roda, opta por se dirigir a casa na posição “de gatas pela calçada abaixo”.
O guarda Arnaldo, sempre composto, não revela o mínimo indício de estar na fase mais próxima do coma alcoólico.
O pensionista do andarilho ainda andou agarrado ao Índio George, porque entretanto já tinha perdido o andarilho. Quem o arrecadou foi o Ricardão, porque acha que aquilo ainda pode dar jeito para o arranjo do SLK da D. Adélia, que ele lá tem na oficina com a buzina enguiçada.
Bem, para dizer a verdade, o resto do pessoal ficou a recuperar forças encostado ao balcão, ou a um dos pinheiros em redor da Sociedade Recreativa, enquanto o Eusébio se enroscou finalmente para uma soneca ao pé das grades de Sagres, escuro como uma sombra, e perfeitamente camuflado naquele canto.
Já cá fora, o R.J., o Fanhoso, com o fresco da noite, tem a brilhante ideia de ir cantar uma serenata à janela da Odete Maria, e logo ali foi acompanhado pelo Cláudio, o Índio George, o António Luís, o guarda Arnaldo, o pensionista do andarilho, o espanhol, o Bruno, todos atestados de imperial, amêndoa amarga, brandymel e sabe-se lá mais o quê, que acharam esta a melhor ideia desde os soutiens com almofadinhas.
Ao som de “Uptown Girl” em tons algo desordenados, a D. Adélia acerca-se à varanda, deslumbrada, convencida que, desta vez, o Bruno é seu... porque os nossos amigos se enganaram e, em vez de ir para a frente da casa da musa do R.J., branca com cortinas azuis e vasos de sardinheiras coloridas na varanda, dirigem-se resolutos para a casa da D. Adélia, um mamarracho com azulejos de casa de banho verde fundo de garrafão, típicos dos anos 60, do lado oposto da rua...
Farto de tanta emoção contrariada e de tanta energia gasta em equívocos – e ajudado por uns quantos graus de Brandymel no sangue, o pensionista, mandando a busca do andarilho às de vila-diogo, encurrala a D. Adélia (agora numa perseguição ainda mais cerrada ao Bruno do Talho) naquela viela ao pé do centro de Saúde, e beija-a o mais loucamente que lhe permite a sua dentadura solta!
E acaba-se o assunto por aqui!! Irra!!




(Semana 3 de 2025)

domingo, 12 de janeiro de 2025

Aquilo que se esconde nos corredores escuros.

Gonçalo acordou com o som de um clique.

Parecia ter sido a porta, mas achava que a tinha fechado quando entrara no gabinete.

Estava agora entreaberta, como se algo tivesse acabado de passar por ela.

Olhou para o relógio no seu pulso, oferecido pela mãe no seu 10º aniversário.

Três da manhã.

O seu turno terminara às 9h da noite, mas deixara-se ficar e, aparentemente, distraíra-se com o tempo.

Novamente.

Não era costume ficar até tão tarde, porém.

Aliás, era a primeira vez que acontecia: adormecer em cima dos papéis e ficar até de madrugada no seu pequeno gabinete, outrora uma cela de um monge, no convento onde funcionava o departamento militar onde trabalhava.

Pelo menos, não tinha sido para cima da máquina de escrever.

Assim, só tinha ficado com o cabelo levantado do lado esquerdo, e com a marca do punho da camisa na cara, e não duas teclas na bochecha e uma risca de tinta preta e vermelha no meio da testa.

Que barulho o tinha acordado?

Estava tudo desligado, com excepção do candeeiro no tecto. Nem aquecimento, nem rádio, nada.

Olhou em volta e viu que estava tudo na mesma, desde o início do seu turno.

As mesmas duas cadeiras, a secretária, uma mesa de apoio e o cadeirão de leitura, junto à janela, a estante, o armário com os romances clássicos que trazia para ler às escondidas no seu tempo livre, a chaleira, o bule, duas chávenas e uns potes com hortelã, cidreira e o Earl Grey que a irmã lhe enviava por correio de Londres, onde vivia.

Alguns papéis caídos no chão. Sim, isso já era estranho.

Gonçalo não era descuidado, e estes papéis estavam no molho da mesa de apoio, não debaixo do seu braço, e muito menos espalhados pelo chão.

A janela estava bem fechada, não passava vento por ali.

Como é que tinham ido parar ao chão?

Ainda se devia sentir atordoado do sono.

Aquelas listagens que estivera a dactilografar, com as vitualhas das despensas do quartel, tinham sido demasiado monótonas para a sua sanidade, ainda via sacos de farinha às dúzias e latas de molho de tomate a passar em magotes em frente aos seus olhos.

E Gonçalo não era uma pessoa dada à imaginação!

Gonçalo Lopes fora outrora um entusiasmado cientista e matemático, mas decidira deixar a sua timidez natural vencer e transformara-se num recruta e, mas tarde, militar exemplar, com muito jeito para contas e organização.

Tinha 24 anos e vivia pacatamente com uma gata preta de nome Artémis, assim baptizada pela sua mãe, fervorosa apreciadora de mitologia grega e de estátuas de mulheres desnudadas, num modesto apartamento com um quarto, um outro quarto transformado em biblioteca, uma cozinha, uma saleta cheia de livros encaixados em todos os recantos, uma casa de banho com uma janela onde se via o nascer do sol, e uma marquise soalheira também transformada em biblioteca.

Pois é, Gonçalo gostava de livros, e da sua vida tranquila e sem sobressaltos, sem emoções além das que vivia nos seus livros e sem amores senão platónicos, nomeadamente a paixão assolapada pela menina Eva da mercearia, desde que chegara a esta vila, e que não lhe davam chatice nenhuma à vida quotidiana.

Na prática, não aparentava ser mais do que um militar solitário e aborrecido, que vivia para o seu trabalho, que era transcrever listagens mais aborrecidas do que ele.

Agora, não havia nada a fazer.

Estava acordado e ouvira um barulho.

Os seus sentidos estavam alerta, atento a outros ruídos, mas não se ouvia nada nos corredores escuros do outro lado da porta.

Esteve assim um minuto, ou cinco, ou dez.

Silêncio.

Começou depois a ouvir mais sons de cliques, mas não eram cliques, era o som da chuva a bater com força na vidraça. Olhou na direcção da janela, mas lá fora só se via a escuridão.

O ruído do temporal que começara a cair distraíra-o para a janela, mas a sua atenção estava agora na porta do gabinete, que estava definitivamente entreaberta.

Isto não era, de todo, hábito seu.

Alguém estava no corredor, mas a esta hora não estaria mais ninguém no edifício além dele. O vigilante não vinha para aqui a esta hora, tinha a certeza.

Espreitou pela porta, abriu-a um pouco mais.

Estava escuro, é claro.

Voltou à sua secretária e tirou uma lanterna da terceira gaveta do lado direito.

Verificou que funcionava.

Aproximou-se da porta, colocou a mão na maçaneta, respirou fundo, puxou-a e aventurou-se no comprido e frio corredor.

Estava vazio e silencioso, como esperava.

Caminhou um pouco mais, com mais coragem, também.

Porque é que lhe estava a faltar a coragem?, perguntava-se.

Avançou até ao meio.

Depois um pouco mais. Levantou a lanterna acima da cabeça e avistou o resto da distância até ao final, quando se cruzava com o outro corredor.

Nada. Ninguém.

Voltou-se e caminhou na direcção do seu gabinete.

A chuva continuava a bater impiedosa nas vidraças, mas lá fora o escuro era absoluto. Seria normal?

Sentiu uma brisa na cara. Também não era normal.

Agora, do outro lado.

Não via nada.

De onde vinha a aragem?

Depois viu-a.

Piscou os olhos sem acreditar.

“Eva?” - perguntou.

Ela olhou para ele, mas não respondeu.

Seria ela? Era tão parecida, as mesmas feições, os mesmos olhos, o mesmo tom de cabelo, o mesmo sorriso escondido.

E, ao mesmo tempo, era tão diferente.

Mais baixa, talvez. O cabelo apanhado de forma diferente.

Um vestido que não era deste tempo, ensopado, sujo de lama e rasgado.

Eva, ou a imagem que ele via e que se parecia com Eva e que ele julgava ser um sonho aproximou-se.

Era parecida, mas não era ela.

“Ajuda-me.” - disse - “Estou perdida.”

Disse, mas não disse verdadeiramente. Gonçalo viu os lábios moverem-se, mas a sua voz só a ouviu na sua cabeça.

“Raios, Gonçalo!” - pensou - “Os romances escondidos no armário e a paixão platónica pela menina Eva deram cabo da tua sanidade. Estás a vê-la em todo o lado!”

Não se apercebeu, mas aproximou-se mais, o que qualquer pessoa de bom senso não faria.

Sabia lá ele onde andava agora o seu bom senso!

A imagem de Eva apontava para a porta do seu lado direito, mas não era bem a porta, era… a parede?

Apontou a lanterna e olhou para a parede com atenção.

A tinta tinha uma cor diferente, como se tapasse um remendo antigo.

Atrás de si, sentiu que outro vulto se aproximava.

Conseguiu espreitar atrás do ombro pelo canto do olho.

Era um homem com o hábito dos monges antigos.

Também apontava, mas para um ponto específico na parede.

O sonho estava cada vez mais estranho.

A cara dele também lhe era familiar, mas não se lembrava de onde.

Tinha a certeza de já o ter visto, porém.

Gonçalo reparou que, nesse ponto, uma parte da tinta parecia descascar. Tocou com a mão e a tinta começou a sair, mostrando que realmente existia ali um remendo na parede.

Raspou com mais vigor e deixou a descoberto uma pedra rectangular.

Tirou a esferográfica que tinha no bolso e tentou desencaixá-la, raspando em volta.

Não foi fácil, mas tinha tempo.

O que ocultaria aquela pedra?

Quase a conseguia desencaixar.

Era só mais um esforço.

Os dedos já estavam magoados e dormentes, e viu sangue num deles, mas não ia desistir quando estava tão perto.

Finalmente, a pedra soltou-se.

As que restavam à sua volta não estavam tão presas, e foi mais fácil retirá-las.

A curiosidade espicaçava-o e levantou a lanterna para espreitar o buraco que realmente se revelava dentro da parede.

Deu um passo para trás, ou talvez três, mas não chocou contra o homem com o hábito do monge, como julgara que acontecia.

Parecia que o tinha atravessado.

Olhou-o, espantado.

E reconheceu-o.

Era um dos figurantes que andava pelo convento a interagir com os visitantes. Já o vira tantas vezes.

Ainda ontem estava no espaço que fora a enfermaria.

Como não percebera que não era real?

Olhou a imagem de Eva, que tapava agora a cara com as mãos.

Aproximou-se novamente do buraco na parede e apontou a lanterna até ver tudo o que estava lá dentro.

Um vestido claro, sujo de lama e rasgado.

O cabelo da mesma tonalidade num esqueleto envelhecido.

A imagem de Eva olhava agora para si e sorria.

Gonçalo compreendeu o que queria.

Na manhã seguinte, este mistério teria de passar para as mãos legais, e o que escondia seria finalmente revelado.

Ouviu a voz dela na sua cabeça apenas. “Obrigada.” E viu-a desaparecer lentamente no corredor.

O homem com o hábito de monge mantinha-se a seu lado.

Quando ele falou, Gonçalo não ouviu a sua voz na sua cabeça, mas a ecoar pelo corredor.

“Ela estava perdida, era preciso ajudá-la a encontrar o caminho.”

Com tudo o que acontecera, ou por julgar estar ainda dentro de um sonho, Gonçalo sentia-se inspirado nessa noite, e perguntou ao homem: “E tu também estás perdido? Posso ajudar-te?”

“Não, de modo nenhum! Estou aqui apenas para me divertir a passear pelo convento e a ler os livros da biblioteca, como fazia quando aqui vivia. A tua pequena biblioteca também é muito interessante. Especialmente os livros escondidos.” Sorriu.

“Como é que sabes que eu…?” - perguntou Gonçalo, absolutamente escandalizado. 

É claro que ele sabia, se andava por onde queria à hora que lhe dava na real gana!

Inicialmente, ficou furioso com tamanho atrevimento, mas depois sorriu também, e depois ainda riu à gargalhada!

Riam agora os dois e o corredor ecoava os risos.

Porque não, afinal?

Porque havia ele de esconder os livros? Porque havia de se encolher para caber nos parâmetros dos outros quando havia tanto para viver e descobrir, mesmo na sua vida tranquila e pacata?

O homem com o hábito de monge acenou e entrou na escuridão do corredor.

Gonçalo olhou para o buraco na parede, onde um dia ocultaram o cadáver de uma jovem e que agora jazia exposto a pedir respostas a perguntas.

Respirou fundo e expirou lentamente.

Já sentia os dedos e estavam magoados. Tinha de ir tratar disto.

Voltou ao seu cubículo, a cela de um monge de um passado longínquo e percebeu que a chuva já não batia com força na janela.

Agora, só o silêncio.


Gonçalo acordou com o sino a tocar.

Olhou para o relógio de pulso que a mãe lhe oferecera no seu 10º aniversário.

Eram sete da manhã.

Olhou em volta e viu que estava tudo na mesma, desde o início do seu turno.

As mesmas duas cadeiras, a secretária, uma mesa de apoio e o cadeirão de leitura, junto à janela, a estante, o armário com os romances clássicos que trazia para ler às escondidas no seu tempo livre, a chaleira, o bule, duas chávenas e uns potes com hortelã, cidreira e o Earl Grey que a irmã lhe enviava por correio de Londres, onde vivia.

Agora, no entanto, o seu cadeirão estava ocupado por um homem vestido com o hábito de um monge, que espreitava por cima do seu exemplar d’ ”Os Fidalgos da Casa Mourisca”.

Sorria à sua expressão estremunhada a despertar no mesmo sítio.

Gonçalo sorriu-lhe de volta.

Não tinha sido um sonho.

Ou, pelo menos, nem tudo tinha sido sonho.

Um dia destes, tinha de lhe perguntar o nome.

E tinha de arranjar outro cadeirão de leitura.

Mas não agora.

Levantou-se e tentou ajeitar a farda.

Talvez fosse boa ideia passar a cara por água, dar um jeito ao cabelo e confirmar se não tinha duas teclas marcadas na bochecha e a impressão da fita da máquina de escrever na testa.

Tinha algo muito importante e urgente para fazer.

Não podia perder mais tempo.

Saiu do edifício e deu-se conta que não chovera no mundo real, apenas no do sonho.

No entanto, um nevoeiro cerrado que não deixava ver as casas do outro lado da estrada competia com o nascer do sol, dando ao exterior uma tonalidade de sonho.

Um tempo perfeito para fantasmas, pensou.

Mesmo no nevoeiro, ou na escuridão, Gonçalo sabia perfeitamente qual o caminho que o levaria a Eva. 



Semana 2 de 2025 (yay!)

Odisseia do Tacho 2006 - CAPÍTULO 10 – COM QUANTAS FITAS SE FAZ UM CAMPO DA BOLA

Domingo à tarde no campo da bola da Cadriceira, que se situa mesmo ao lado da Sociedade Recreativa.  De terra batida, com umas fitas de “Cri...