Aqui, neste lugar onde me encontro, já seis mil anos se passaram sob os meus pés.
As águas do lago mantêm-se calmas, não denunciando que são eternidade.
As pedras brilharam ao sol, choraram à chuva, foram marcadas, algumas cobriram-se de musgo, e envelheceram.
As bolotas tornaram-se troncos frágeis, depois carvalhos vigorosos, enfrentaram o calor e as neves, morreram, uns mais cedo do que outros, e voltaram a nascer e a crescer.
A lua cresce, e diminui, e volta a crescer. O seu domínio é o meu. O meu domínio é o seu.
Aqui me mantenho, quase imutável, cada vez mais poderosa, desde o dia em que, enganada pelo poder da criatura que aqui vivia anteriormente, caí na sua armadilha e fiquei presa. Nada que me incomode muito. Gosto de estar aqui, do silêncio, da paisagem, de sentir que sou eu quem controla quase tudo em meu redor.
De vez em quando, passa por aqui um cavaleiro perdido. São tão fáceis de dominar e de fazer cair no lago, pela encosta das pedras que fica a coberto das nuvens e da vegetação. Gosto de ver o desespero do inevitável a espelhar-se na sua face quando percebem o momento em que à sua frente nada mais têm do que o infinito e a morte certa.
Algumas vezes, passam viajantes. Os seus cavalos apercebem-se de algo, afilam as orelhas e aceleram o passo, mas não me mostro e, para eles, os mortais, sou mais uma pedra alta na paisagem agreste.
Uma vez só, passou uma igual a mim.
Como fui há muito tempo.
Nunca tinha visto nenhuma dos deles aqui.
Este lugar é agora muito dentro da floresta para desejarem vir passear.
No entanto, algo a fez voltar. Não uma ou duas vezes, mas muitas, durante anos. Consegui acompanhar as suas transformações físicas. Cabelos claros que escureceram e alongaram, a figura a a ganhar forma, os gestos a suavizarem. Os mesmos olhos verdes a espreitarem sem revelar segredos.
Uma novidade interessante para mim, que durou muito pouco do meu tempo, porém.
Para mim, medir em anos é um inspirar e um expirar suaves, quando tenho toda a eternidade atrás de mim e à minha frente.
Algo a atraía, mas ela nunca soube o que eu era, e eu nunca me mostrei.
A mortal era fraca e indigna, não iria aguentar olhar o meu poder.
Ou talvez eu tivesse inveja da liberdade que tinha em conseguir sair deste lugar, em voltar para a civilização, do outro lado da colina, para o movimento e as casas e o mercado e os risos.
Na última vez que veio, um cavaleiro acompanhava-a.
Mantive-me mais quieta ainda, a observá-los atentamente. Nunca tinha visto mortais a interagir entre si, neste lugar. Os que passavam, vinham sozinhos, se falavam era com os animais que os acompanhavam.
Fiquei curiosa, e não me decepcionei. Eram mais interessantes do que os outros.
Julgando-se completamente a sós, sentiam-se mais livres, e vi-os a saltar nas pedras, a rir às gargalhadas, a tirar os sapatos e a brincar no lago.
Mas algo aconteceu que fez mudar o ambiente. Não sei se um olhar dele sob um raio do sol, ou se um levantar da saia dela um pouco mais acima da canela, até eu senti a estranha mudança no ar, no vento, na temperatura exterior.
Ele era um ser tão lindo, tão luminoso, olhos claros, de um azul que fazia imaginar destinos irreais, e um sorriso escondido, tímido, atrás de uma expressão sóbria. Mais bonito do que os outros que passaram antes, que mal tinham tocado a minha curiosidade, e com algo dentro dele que era denso e sombrio, que eu mal conseguia identificar mas, não tinha dúvidas, estava lá.. Nenhum dos outros me causara as sensações que corriam agora dentro de mim, nenhum dos outros me fizera voltar o olhar e espreitar com mais atenção.
Segundos depois, extinguiram-se os sorrisos e os olhares eram fixos e sérios, como se só eles existissem no mundo nesse momento, eclipsando as pedras, as árvores, o lago, até eu, aqui, sólida e imponente, apesar de invisível aos seus sentidos, e abraçaram-se como se se quisessem fundir, beijando-se com intensidade.
Nunca tinha visto algo assim, nem quando eu própria era mortal.
O que se seguiu, o arrancar apressado das roupas, os gemidos ofegantes, os movimentos animalescos, acordaram algo em mim que não sabia sequer que existia. Algo monstruoso. Mais monstruoso ainda, quero eu dizer.
Algo que queria ficar.
Algo que me fazia querer libertar de onde estava.
A sequência de movimentos repetiu-se, uma, duas, várias vezes, até a respiração denunciar o cansaço, até quase o sol se pôr na colina.
Vi-os arrumar as coisas espalhadas e prepararem-se para partir.
Senti que a odiava com todas as minhas forças, que a queria ter só para mim, mas que lhe queria fazer mal também.
Então, tive uma ideia. Não podia não voltar a sentir este vibrar que eles me causaram e, mesmo sem conseguir chegar a ela, ele era tão fácil de dominar…
Ordenei ao vento que mexesse as folhas num ramo, que lhe soltasse uma madeixa do cabelo, que era longo e da cor da palha nos campos, o que fez o fez olhar na minha direcção. Foi tão fácil.
“Aylmer…”, chamei.
“Aylmer…”. Dei a minha ordem à sua mente. O seu sorriso confirmou-o. Era meu. Estava feito.
Era esse o seu destino, agora.
Era essa a sua missão, incumbido pelo seu anjo, a sua musa, a sua inspiração.
“Callia.”
O meu nome escapou dos seus lábios, ou teria sido o vento?
Fraco! Fraco! Como todos os mortais.
…………
A lua erguia-se na colina embora o sol ainda não se estivesse escondido completamente.
Aylmer olhou as mãos. Estavam manchadas de sangue e seguravam ainda o seu punhal, exemplarmente bem cuidado, como era seu dever de cavaleiro.
A estranha pedra que vira no círculo no centro da floresta, junto ao lago, ecoava na sua mente como se fosse a mulher mais bela que havia visto, e a sua ordem ainda latejava nos seus ouvidos.
Fora tão fácil obedecê-la.
Será que era o desejo dela, ou o seu, que comandara as suas mãos a trespassar com o seu punhal o coração de Brea?
Ainda sentia cravado nele o seu olhar acusador quando ela compreendera a traição e vira a revelação das suas intenções.
Respirou fundo, mas não se sentia neste lugar. Nem era prudente que ficasse.
Estava feito. Não havia nada para ele aqui, agora.
Aylmer avançou na direcção da floresta.
……
Callia viu Aylmer olhar o céu, mesmo não estando no alcance do seu horizonte.
Sabia que iria achar estranho o modo como nenhuma estrela se mostrava. Apesar disso, a Lua brilhava intensa, e iluminava tudo em redor. Não teria dificuldade em ver o caminho, em chegar a ela. Chamou-o com a mente. Era tão fácil fazê-lo obedecer aos seus pedidos.
A floresta densa erguia-se perante ele, mas não lhe foi difícil vislumbrar a pequena abertura para o discreto caminho que a atravessava de uma ponta à outra, contorcendo-se no interior por entre as árvores centenárias e os rochedos cobertos de símbolos desde tempos imemoráveis, arbustos transformados em árvores, troncos entrelaçados entre si, uma interminável hera a acorrentá-los de alto a baixo, pequenos ribeiros e cascatas em lugares surpreendentes, escondidas e prontas a saciar a sede a viajantes desorientados, por qualquer dos lados que se conseguisse entrar, um labirinto interminável, até seguindo pelo quase invisível carreiro até ao ponto mais secreto, ao lugar de maior poder, no seu centro, junto ao lago do fundo dos tempos e do círculo de pedras que já ali estava desde antes dos homens que correm agora a Terra.
As árvores pareciam sussurrar o seu nome, o de Brea, o de Callia, o seu crime.
Às vezes, pareciam gritá-lo. Apressou o passo e continuou a ouvi-lo. Parou, e ele continuava. Talvez agora fosse assim. Ou talvez fosse do lugar. Uma parte de si sentia-se atraída, mas algo lhe rosnava que era maligno e que seria castigado, que merecia ser castigado.
Aylmer estava de regresso ao local onde a encontrara a primeira vez, junto ao lago escuro e assustadoramente tranquilo, junto ao círculo de pedras com símbolos que não conhecia, debaixo de um emaranhado de ramos densos e intemporais, sob a luz intensa da lua cheia.
Parecia que se tinham passado séculos desde o dia de ontem, em que ali estivera com Brea.
Aproximou-se da mulher que parecia uma deusa, ou uma pedra entre as que ali estavam, ou a própria lua.
Parecia-lhe tão alta, mas não sabia que era o efeito causado pelo brilho da lua e pela ausência de som, excepto o que vibrava dentro de si. Os seus olhos fixavam-no como se quisessem prendê-lo, e comseguiram-no, olhos tão escuros, tão fundos, tão imperiosos, que a sua respiração se suspendeu. Sorria como se tivesse alcançado o que desejava, um sorriso de conquista, de vitória não se consegue esconder, e Aylmer não sabia se queria fazer parte dessa conquista ou se devia ter medo dela, porque ao olhá-la sentiu-se gelar.
As vozes na sua cabeça calaram-se, como sucedera antes com os sussurros da floresta. O silêncio era palpável.
Ajoelhou-se aos seus pés e baixou a cabeça, subjugado pela aura de poder que dela emanava.
Como podia ser tão bela?
Sentiu medo e luxúria e ódio ao mesmo tempo.
Eram dele estes sentimentos, ou eram dela?
Como lhe podia controlar os pensamentos e instruí-lo a pegar no punhal que trazia à cintura?
Lentamente, mas decidido, subiu o punhal acima da sua cabeça, olhando-o.
Reflectia a luz da lua, que passava pela abertura das árvores altas.
Reflectia o olhar escuro de Callia, onde se reflectia a luz da lua.
Como podia não obedecer à sua ordem?
Lentamente, olhos de novo os céus, fechou os olhos e inspirou fundo.
Sentiu o coração a acelerar e depois a acalmar.
Finalmente, compreendera.
Uma lágrima escapou, rebelde.
Num golpe experiente, baixou o punhal ao lugar no seu pescoço onde sabia que a morte viria mais rápida.
Ainda levantou o olhar a Callia, a sua deusa, o seu carrasco, e conseguiu compreender o seu sorriso triunfante.
Não passara de um peão nas suas mãos.
O sacrifício fora, finalmente, consumado.
……
Callia sorria, mexendo lentamente os membros, que sentia como novos.
Sim, fora mortal e fora enganada. Ficara tempo demais transformada em pedra e agora queria viver.
Aylmer fora perfeito para o seu desejo, e agora ficaria no lugar dela, uma pedra para a eternidade, e ela era… livre!
Mas… livre para quê, afinal?…
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