quinta-feira, 13 de junho de 2024

A pedra intemporal.


Benedictus Vecchio, padre desde há dois mil anos, outrora sacerdote de outra crença, mais selvagem, mais viva, quem sabe mais verdadeira, olhou as pedras à sua frente.

O vento soprava forte sobre as ervas altas, passando pelo meio das folhas dos castanheiros e dos carvalhos, e este era o único som que ouvia agora, e era igual ao que sempre ouvira neste lugar, excepto nas noites de celebrações, em que o som era o das vozes dos homens a falar ou a cantar, e o do crepitar das chamas das fogueiras altas, cujas labaredas se estendiam aos céus nas noites límpidas cheias de estrelas, independentemente do deus que veneravam. Se respirasse fundo algumas vezes, se focasse a mente e se concentrasse nos sentidos, conseguia sair do tempo em que estava e voltar atrás. Já não o fazia com tanta facilidade, mas este planalto, com quatro dólmenes, ou três dólmenes e uma meia capela, agora também uma ruína, e o horizonte à sua frente, era um dos poucos locais onde isso ainda era possível. A mão humana quase não chegava aqui, ficava-se na aldeia ali em baixo, e na vila ainda mais abaixo na serra, e os que aqui vinham tinham objectivos bem definidos, fossem estes mais leves ou mais profundos. Não se vinha para aqui passear por acaso.

Tocou a pedra e sentiu-se desaparecer do tempo presente por longos minutos. Ainda conseguia viajar sem sentir o vácuo do tempo no fundo da barriga. Abriu os olhos e olhou em volta, em seu redor estava já a anoitecer. As raparigas que estavam a empilhar os ramos secos no meio das pedras para a cerimónia desta noite olharam-no, reconhecendo-o. A que tinha os cabelos cor de fogo sorriu-lhe. Era a noite do solstício de Verão. A noite mais curta e o dia mais longo.

Nos dias de hoje já não precisava de caminhar até aqui acima. Fizera uma viagem confortável por parte do sul da Europa numa mota razoavelmente silenciosa, e instalara-se civilizadamente numa pousada na vila, que pouco mudara desde que aqui vivera. Agora até tinha wifi e podia publicar logo nas redes sociais as fotos que tirava. Fotos de plantas e de pedras e de gatos, principalmente, mas… enfim, conseguia adaptar-se bem aos tempos modernos, apesar de viver na maior parte do tempo tranquilo num convento numa colina no meio das vinhas e com o cheiro da brisa marinha não muito distante, assim como a sua névoa súbita e húmida.

O castelo que antes conhecera como uma defesa inatingível era agora uma bela ruína, onde tinha tido a agradável experiência de uma feira medieval, mas com comida e bebida servida de forma mais higiénica, para seu grande prazer, e o solar onde dormira tinha uma cama com lençóis macios e lavados e uma fantástica casa de banho com água canalizada para um merecido duche, coisa que era impensável em tempos passados, quando percorrera estas serras a defender as gentes dos loucos com a máscara ou a bandeira da Inquisição.

Nestas alturas, sentia-se indeciso. A vida não era simples para ninguém, em nenhum tempo do mundo conseguia existir sem que tivesse de se confrontar com conflitos, com intolerâncias, com a raiva e insatisfação das pessoas. Mas aqui, olhando o planalto cheio de carvalhos antigos em seu redor, e que no mundo em que vivia agora não passavam de um nome dado ao lugar, as suas folhas a sussurrar com a brisa do anoitecer, o sol a descer na montanha mais além, onde se refugiaram os povos rebeldes, os troncos a serem percorridos pela névoa subtil do anoitecer… largou a pedra e ficou mais um pouco, olhando-a no tempo em que estava, imponente e dona de si própria, uma deusa no meio da serra, no meio das árvores, no meio da gente que a venerava como divindade.

Só por hoje, decidira, não iria regressar.


Semana 24/2024 ou isso, estou no meio dos exames, não sei nem em que planeta estou....

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