quarta-feira, 29 de maio de 2024

Silêncio


Eduardo vivia no silêncio.

Era mudo. Desde sempre. Nunca chegara a pronunciar um som, em toda a sua vida.

Desde que começara a compreender o mundo à sua volta, a sua perspectiva não fora a mesma das outras criança, e a adolescência foi um sonho estranho e cheio de mudanças bruscas de temperatura.

Agora, em adulto, estava mais ou menos habituado a que o olhassem de lado, com desconfiança, com pena, às vezes com asco.

Mas não se importava. Afinal, o mundo em que vivia era bastante interessante.

Quem sabe se, para compensar a sua ausência das palavras faladas, os seus outros sentidos tornaram-se mais desenvolvidos do que o habitual, e a solidão com que sempre vivera dera-lhe tempo para o fazer.

Por esse motivo, o prazer com que escutava as composições de Beethoven era sincero e devastador.

No entanto, o ruído que as outras pessoas faziam deixava-no atordoado. E aprendera a deixar de ouvir. Era também surdo, mas por vontade própria.

Por esse motivo, dedicara a sua vida a observar as estrelas por entre os ramos das suas árvores.

E a partilhar a sua solidão com elas.

Adorava sentir o cheiro das frutas frescas acabadas de colher da sua horta, e tocar na casca suave ou rugosa dos vegetais que colhia.

O que tocava falava com ele em muitas palavras de sensações.

O seu paladar era apurado à conta de todo o treino que investira nele e, porque não, pensava orgulhoso, algum talento inato.

A sua particularidade não era uma aberração, mas um dom!

Olhou o seu quintal cheio de cores e de cheiros, o vento a passar, para ele silenciosamente, pelas folhas da velha árvore que se erguia no meio do terreno e que se recusara a cortar, construindo e plantando em seu redor.

Viu o anoitecer a chegar, os pirilampos a brilhar na escuridão lá ao fundo e as pequenas luzes com paineis solares a acender, enquanto os guinchos e as gargalhadas que sabia estarem a ser emitidos não chegavam ao seu cérebro.

Sim, era diferente na sua expressão física neste mundo, e também na sua alma.

Foi por isso que não sentiu qualquer remorso quando serviu os cogumelos venenosos a Frederica, a sua vizinha tagarela, que nascera com todas as palavras que lhe haviam sido recusadas em vida e mais alguma, e a viu asfixiar dolorosamente no chão, imaginando apenas os sons que fazia ao arquejar e ao se engasgar com todas as palavras que não soubera partilhar.

Mais uns momentos, e o quintal ficou novamente em silêncio.

Para Eduardo, foi sempre assim que esteve.





Semana 21/2024

segunda-feira, 20 de maio de 2024

O tempo parado.

Hoje vieram trazer um relógio à livraria.
Atentem, não é um mero relógio, portátil, prático e com um aspecto minimamente tolerável.
Não...
É um mamarracho.
Horroroso como o deus grego dos infernos que está ali naquele “Guia de Interpretação dos Mitos Gregos”.
Velho como o tempo. Como o exemplar das “Religiões da Lusitânia”, do José Leite de Vasconcelos, edição de 1897.
Ainda por cima parado. Como a trilogia do Lusco Fusco, como lhe chama a Florbela. Parados nas estantes, e cada vez chegam mais destes.
Aqui, nesta livraria, é tudo em segunda mão, afinal.
Móveis em segunda mão. Ou com experiência de vida, como ela diz.
Livros em segunda mão. Ou com histórias dentro de histórias, também como ela diz. Gatos em segunda mão, e em relação a esse aspecto não me queixo, e até compreendo bem o que a Florbela me diz, enquanto me coça a papuça debaixo do pescoço.
Quem mais ia aceitar um gato cego de um olho, magricela e com um tom cinza deslavado tão sujo que mais parecia cinza da lareira?
Só mesmo a Florbela para pegar em mim e dar-me todos os mimos que eu não sabia que os gatos mereciam.
Por isso, também sou em segunda mão, ou mais, sei lá eu, e com uma história, ou mais, sei lá eu.
Tenho de confessar: o relógio limpo tem outro aspecto.
E, olhando de perto, vemos que é percorrido por riscas e nomes: Mariana, Catarina, Quim, Ana, Artur, Francisco.
Crianças que foram, um dia, e que cresceram.
Quantas histórias terá este relógio parado?
As crianças já não o são mas, aqui, sê-lo-ão para sempre, paradas num momento no tempo.
Percebo porque é que a Florbela o trouxe para aqui: é mais uma história para contar.



Desafio Semana 20/2024

domingo, 12 de maio de 2024

A incrível história do Gavião que não sabia voar, e da Rosa que lhe mostrou para que serviam as asas.

Agapito Higino dos Santos Gavião, pastor de profissão, filho de Madalena dos Santos e de António Gavião, herdeiro dos nomes dos seus avôs, o que lhe agastou um pouco a infância e a adolescência e também outras alturas da vida que já irei explicar, 45 anos de idade, estado civil solteiro, estatuto solteirão e, mais concretamente aqui na aldeia de Casais das Lages, de encalhado.

Encalhado por causa do nome, provavelmente, e por causa do cabelo ruivo, quase de certeza. As raparigas fugiam todas dele. Quer dizer, não fugiam a correr, é claro, mas nenhuma aceitava conversar com ele mais de dois minutos, e a ele também já não lhe interessavam as conversas, depois de ficarem a olhar fixamente para o seu cabelo ruivo, em vez dos seus olhos.

Até o Tenório Pintassilgo tinha conseguido arranjar noiva, casar e ter um bando de filhos risonhos, e o Hilário Pisco tinha publicado um livro com os seus desenhos das plantas do campo sem se sentir envergonhado… e ele a correr os montes para não ter de ver as pessoas, para as pessoas não terem de o ver, a calcorrear serras e vales, a conversar com as ovelhas por não ter com quem falar, já lhes lera os livros todos da pequena biblioteca, já lhes contara lendas das velhas da aldeia e as histórias que só existiam na sua cabeça e na sua boca e só ecoavam pela serra, levadas pelo vento.

Passara toda a vida assim, sempre a caminhar.

Olhou lá em cima o outro gavião a planar, asas azuis a desafiar os céus. Outro se juntou, castanho, uma fêmea. 

Parou e sentou-se, a observar.

Olhou as árvores e as pedras e o seu dançar lá em cima.

Ouviu o vento a marulhar nos ramos e a rodopiar as folhas.

A seu lado sentou-se Rosa, a Rosinha, colega da escola, vizinha desde sempre. Tão calada, de olhos grandes.

Nunca falava, só olhava, mas os seus olhos contavam histórias dos mundos que haviam de ver.

E ali ficaram os dois, a planar na brisa da tarde.


Desafio Semana 19/2024

domingo, 5 de maio de 2024

As subtis nuances da Física

Não é fácil construir um foguetão.

Não um foguetão a sério, daqueles em que cabe uma pessoa, mesmo um rapaz de 9 anos. Um dia destes, talvez, que as férias de Verão são longas.

Mas um foguetão, mesmo assim.

Exige técnica, perícia, concentração.

Livros esquisitos e específicos da biblioteca requisitados com o cartão da mãe, entregues com um olhar de esguelha da Menina Andreia, que só a vê levar romances cor-de-rosa e livros de técnicas de poda.

Material.

Principalmente material.

O Jorge quase foi apanhado na garagem do avô. Escapou por um triz.

O Paulo convenceu a prima Bia a trazer os rolos de alumínio da cozinha da mãe dela, enquanto apanhou todos os que tinha em casa.

Passaram quatro tardes inteiras a raspar a pólvora dos fósforos a que conseguiram deitar as mãos nas semanas anteriores.

Havia mães, avós, vizinhos, sem uma caixa de fósforos, além do Sr. António do café, aventura que os fez ganhar a fama de uma brilhante escapadela, por dois dedos, do Pirolito, quando ainda foram apanhar mais umas quantas à churrasqueira dele.

Não havia motivos para falhar.

Escolheram o lugar certo, o que os seus cálculos de terceira classe indicaram como o mais propício para conseguirem atingir o seu objectivo.

Como precaução, abrigaram-se atrás da vedação de madeira, que tinha um buraco estratégico. A estratégia era do irmão mais velho do Paulo, que gostava de espreitar as meninas a apanhar sol. A adolescência…

Foi, por isso, com um certo desgosto que, em vez de verem o super foguetão (amador) dos Primos Jorge e Paulo levantar um sublime, elegante e fiável voo em direcção à lua, o viram apontar certeiro à janela da saleta da Menina Andreia, estilhaçando-a em pedaços e deixando dois gatos bastante furiosos.



Desafio Semana 18/2024

O castelo na penumbra

Sintra, Novembro de 1827. O vulto do jovem homem de cabelo loiro passou de novo, rapidamente. Desta vez, quase o conseguiu ver pelo canto do...