Hoje vieram trazer um relógio à livraria.
Atentem, não é um mero relógio, portátil, prático e com um aspecto minimamente
tolerável.
Não...
É um mamarracho.
Horroroso como o deus grego dos infernos que está ali naquele “Guia de Interpretação
dos Mitos Gregos”.
Velho como o tempo. Como o exemplar das “Religiões da Lusitânia”, do José Leite de
Vasconcelos, edição de 1897.
Ainda por cima parado. Como a trilogia do Lusco Fusco, como lhe chama a Florbela.
Parados nas estantes, e cada vez chegam mais destes.
Aqui, nesta livraria, é tudo em segunda mão, afinal.
Móveis em segunda mão. Ou com experiência de vida, como ela diz.
Livros em segunda mão. Ou com histórias dentro de histórias, também como ela diz.
Gatos em segunda mão, e em relação a esse aspecto não me queixo, e até
compreendo bem o que a Florbela me diz, enquanto me coça a papuça debaixo do
pescoço.
Quem mais ia aceitar um gato cego de um olho, magricela e com um tom cinza deslavado tão sujo que mais parecia cinza da lareira?
Só mesmo a Florbela para pegar em mim e dar-me todos os mimos que eu não sabia
que os gatos mereciam.
Por isso, também sou em segunda mão, ou mais, sei lá eu, e com uma história, ou
mais, sei lá eu.
Tenho de confessar: o relógio limpo tem outro aspecto.
E, olhando de perto, vemos que é percorrido por riscas e nomes: Mariana, Catarina,
Quim, Ana, Artur, Francisco.
Crianças que foram, um dia, e que cresceram.
Quantas histórias terá este relógio parado?
As crianças já não o são mas, aqui, sê-lo-ão para sempre, paradas num momento no
tempo.
Percebo porque é que a Florbela o trouxe para aqui: é mais uma história para contar.
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