quarta-feira, 15 de maio de 2019

A Devoradora de Corações - Epílogo.


Celestes

A Irmã Generosa, pelas mãos de Leonor, acrescentou mais um parágrafo no caderno onde apontava as suas receitas e as suas notas, deitando um olho ao tacho de cobre onde a fruta se tornava numa papa doce e borbulhante, enquanto se recordava da sequência dos acontecimentos dos últimos dias.
O encerrar do convento antigo, entre comoção e saudade, a mudança para o lugar novo, com mais ou menos entusiasmo, independentemente das idades, com a estranha doença da pequena Maria dos Anjos que se arrastou por estes dias e, finalmente, na noite passada, a assustadora e tremenda tempestade e a destruição completa do muro do claustro sul pela subida das águas do ribeiro, de repente tão violentas e incontroláveis, que arrastou com ele o claustro onde se passeavam tranquilamente em dias de sol e de chuva e de todo o edifício onde antes dormiam as irmãs, que inevitavelmente teriam ficado sem vida debaixo dos escombros, em vez de estar a despertar numa manhã de sol luminosa em camas igualmente frescas e lavadas, um pouco mais acima na colina, de onde podiam ver o pinhal mais ao fundo e as clareiras de malmequeres.
Era um pouco mais complicado fazer as coisas, agora, mas seria uma questão de tempo até se habituarem, uma e outra: a Irmã Generosa a ver as suas mãos nas mãos de Leonor, a treinar os gestos antes tão habituais, a partilhar os seus pensamentos, a ter à sua volta a calma sempre presente do olhar de Henrique, a aproximar-se suavemente quando a percebia mais focada e absorta nos seus afazeres na cozinha.
Não podia ter pedido aos céus um presente melhor do que a Irmã Piedade para continuar o seu trabalho na cozinha. A ela deixara o seu caderno de cozinha, e a todas as mestras da cozinha do convento que se seguissem, o que arreliara um pouco a Imaculada, ela vira, lá do tecto da capela, onde velara o próprio velório, mas Imaculada ficara apaziguada ao receber um caderno só das duas, construído com amor durante todos estes anos, sem que ninguém o soubesse, nem a alma mais igual à sua, a sua marca única, as receitas e as ervas, Generosa e Imaculada, como sempre haviam sido uma com a outra, sem segredos, irmãs de hábito e de coração.
A marmelada estaria em breve pronta, a segunda receita na cozinha nova do novo convento, uma receita para apaziguar o espírito e o corpo.
Agora era Leonor quem fechava o caderno e respirava fundo, sentindo o espírito de Generosa a afastar-se e a tornar-se mais ténue, indo, quem sabe, na direcção do horto, desta vez. Leonor sorriu a este pensamento.
Ocorreu-lhe que a anterior cozinheira iria detestar o aspecto impessoal e impecável daquela cozinha acabada de estrear.
Não a limpeza em si; a cozinha de Generosa sempre fora limpa e organizada, mas a esta faltava o toque de uso e personalidade de que ela gostava, as colheres de madeira vindas do seu enxoval, a travessa oferecida pelo próprio rei para servir o manjar real em dia de festa, o tacho de barro com a asa partida que tinha sobrevivido assim quase inteiro a uma brincadeira na ceia de Natal há tantos anos atrás.
Sim, a vida aqui estava renovada, como renascida, assim como o convento.
Leonor precisou destas paredes novas para perceber que há coisas boas que vêm com a mudança, com o fim de outras coisas.
É necessário guardar algumas, mas também é preciso largar a mão de outras e de as deixar voar em direcção ao nosso passado.
Colocou um pouco da sua canja de galinha acabada de fazer numa gamela de barro, com a colher de madeira de nogueira que viera no enxoval de Generosa há muito tempo atrás.
Com o carinho com que sempre o fizera, retirou duas folhas de hortelã do molho fresco que Imaculada lhe trouxera para a ocasião.
Pensou na hortelã, símbolo das coisas passadas, pois Imaculada havia caminhado até ao convento antigo para a ir apanhar, símbolo da sua união, porque todas quiseram dar um pouco de si para a recuperação da sua pequena doente.
Pensou no seu amor perdido e agradeceu ter tido a oportunidade de cozinhar para ele, de cozinhar este prato, simples que era, e o seu preferido, e esse pensamento trazia-lhe um sorriso aos lábios e calor ao coração.
Mas, agora, o seu coração estava virado para as surpresas do futuro, e a sua canja era agora um caldo de vida, com um toque do passado, servido entre rosas e bordados de pássaros a uma criança que também acordara de um violento tormento renascida para a vida num lugar novo, depois de uma noite de tempestade e destruição que teria reclamado a vida de todas se tivessem ficado no convento antigo mais um dia.
Apenas uma delas decidira obstinadamente não acordar no novo convento, apesar de se ter deitado na sua cama nova, na sua cela nova, onde tivera de admitir que gostava bastante da vista da janela, e depois de se ter despedido tranquilamente de todas as companheiras, mas cujo espírito, Leonor sabia, se iria manter junto delas durante uns tempos.
Tinha sido a união de todas elas que as salvara, e o amor que sentiam umas pelas outras não poderia nunca mais ser derrubado.




quarta-feira, 1 de maio de 2019

A Devoradora de Corações - 6

Aletria Doce

A minha companheira de cela, aqui, é a Irmã Maria da Luz. Luz no nome, escuridão no fundo da alma, eu sei, apesar de ela ter esse segredo guardado bem no fundo do coração.
Ela teve uma vida fora daqui, há muito tempo atrás. Teve um marido, que a estimava, mas que desistiu dela. Teve uma filha, um bebé lindo, as mãos pequeninas, o rosto perfeito, mas que nunca abriu os olhos. Era uma menina e, se tivesse nascido viva, teria por agora a mesma idade que eu. Creio ser esse o motivo que a faz olhar para mim pensativamente. Será que a sua filha teria cabelos castanhos como os seus? Seriam lisos? E os olhos? Seriam risonhos? Teria sido uma rapariga feliz? 
Não foi ela quem mo contou, nem nenhuma das outras irmãs, que ninguém conhece o seu segredo, mas um dos anjos que guarda este convento.
Ele diz-me que não tenha medo, que nos acompanha até ao convento novo, e que vai continuar connosco, e será como se não tivesse havido mudança nenhuma.
Diz-me que quase morro, mas que o amor que esta minha irmã me tem é amor de mãe, porque eu sou a sua filha perdida e ela é a minha mãe perdida, e que é o nosso reencontro que nos salva às duas.
E eu acredito nele, que nunca me mentiu.
Eu tive uma mãe, mas não era mãe, apenas me colocou no mundo.
E tive uma avó, que me dava colo e carinho, mas não foi por muito tempo.
Eu não me lembro, porque era muito pequena, mas guardo a sensação do seu colo.
Foi o anjo que me contou, e eu recordei-me.
Quando era quase um bebé, devia ter uns três anos, gostava de brincar na pequena floresta que me parecia o nosso jardim. Escondia-me entre os arbustos e procurava fadas. Conversava com pássaros e coelhos. Muitas vezes, fugia do quarto onde estava com a ama e vinha procurar os meus amigos.
Num desses passeios, fui dar à capela, onde estava uma caixa grande, com uma pessoa lá dentro deitada, sem se mexer.
Vi o lenço da avó e chamei por ela. Como não me respondeu, cheguei-me mais perto. Estiquei-me, porque era baixa, e consegui tocar-lhe na cara. Era a avó, mas estava tão fria e quieta, quando habitualmente era quente, que tive medo e assustei-me. Chamei por ela, mas não me respondeu, nem sequer se mexeu. Gritei mais alto, puxei-lhe pelo braço, desequilibrei-me, mas a avó não me segurou, antes caiu em cima de mim, soltou-se a fita que tinha na cara e abriu uma boca com uma língua que me meteu medo.
Urinei a roupa que a mamã tinha escolhido e fugi para longe, para tão longe, não para a minha árvore preferida, porque a avó sabia qual era, mas para uma mais distante. Tapei a cara e não quis ver nada, mas quando fechava os olhos só via a boca aberta e a língua de fora, como que a tentar comer-me.
Só me encontraram de noite, ninguém soube o que aconteceu, fiquei doente durante muitos dias, tive febres e pesadelos e chorava e gritava durante o sono, como faço agora mas, um dia, acordei, e não me lembrei de nada.
Foi a partir desse dia que comecei a ver anjos e eles começaram a falar comigo.
Os meus papás ficaram muito aflitos comigo e, um dia, trouxeram-me para este lugar.
Eu gostei, porque era tranquilo, e as minhas febres e prostrações deixaram de ser tão fortes, e passaram a acontecer muito poucas vezes. Já não passava dias de cama, com delírios e suores, e os anjos já não pediam tantas vezes que não comesse as minhas refeições, porque neste lugar, a comida é de Deus e não me pode fazer mal à alma.
Gostei porque encontrei a minha mãe perdida e ela me deu o amor que me salvou, mesmo agora que estou numa cama de olhos fechados e sem se perceber que respiro, eu sei que ela está do meu lado, que me segura e beija as mãos, e que fala junto do meu ouvido as coisas que fazem no convento, que a Irmã Piedade está a fazer uma canja que me vai saber aos céus, que a Irmã Imaculada foi buscar as rosas de que eu gosto ao jardim do convento antigo, que a Irmã Maria do Céu está a bordar uma colcha com pássaros para a minha cama, que a Irmã Áurea pintou de branco a minha cadeira e que lhe desenhou pequenas rosas, que a Irmã Generosa já não está entre nós mas que morreu em paz e sem sofrimento, mas isso já eu sei, porque o anjo me contou.
Gostei porque não sabia o que era o amor de uma mãe, mas agora que sei já não quero deixar este mundo, e o anjo diz-me “dá-me a mão e caminha, que eu levo-te à tua mãe”, e eu dou-lhe a mão e caminho com ele, porque nunca me mentiu, e quando acordo tenho um sorriso nos lábios porque estou nos braços da minha mãe.



O castelo na penumbra

Sintra, Novembro de 1827. O vulto do jovem homem de cabelo loiro passou de novo, rapidamente. Desta vez, quase o conseguiu ver pelo canto do...