Prólogo: Marmelada Vermelha.
Soror Generosa mexeu de forma suave o doce e suspirou melancolicamente. Apontou mais umas notas, olhando atentamente para o resultado da sua nova experiência, e começou a colocá-lo nas tigelas de barro com uma velha colher de madeira de nogueira que trouxera no seu enxoval, há muitos e muitos anos atrás.
Isto passara-se há já 70 anos. Soror Generosa olhou as mãos. Contava agora 85 anos de idade. A pele estava um pouco manchada e enrugada, mas podia olhar sem qualquer outra diferença para as mãos esguias e elegantes, mãos de poeta e não de cozinheira, que trazia quando tinha 15 anos e entrara para sempre, ou assim ela o julgara até à manhã de hoje, deixando para trás o nome de Francisca que usara até essa idade, uma parte pequeníssima da sua vida, e um noivo com quatro vezes a sua idade que falecera menos de uma semana antes do casamento, pelo que, apesar da tenra idade, e de o pai a ter enviado para um convento, Francisca, depois Generosa, sempre teve noção de que a vida lhe escolhera melhor o destino e lhe tinha mais amor do que o seu pai.
Mesmo assim, ficou confusa, e um pouco decepcionada, quando a vida, pelas palavras da Madre Superiora, lhe anunciara nessa manhã que, por motivo de constantes cheias e de o seu singelo convento estar em risco de ruir, um senhor abastado e benévolo decidira construir-lhes um novo convento umas dezenas de metros acima, e que estaria pronto já no próximo Outono.
Quisera ela que viesse uma cheia tão grande e tão forte que levasse tudo: a ela e ao convento e às suas dúvidas e aos seus medos, sabia ela lá do quê.
Só sabia era que tinha tido uma vida de paz e tranquilidade durante os últimos 70 anos, e que as novas da Madre Superiora lhe tinham deixado um bichinho de incerteza e desconhecido a roer no peito.
Ambrósia
Desde que me lembro, sempre gostei de comer corações.
Biscoitos em forma de coração que a minha avó comprava na loja da minha aldeia, e que o Sr. António ia buscar de um saco de papel enorme, que trazia para o pé do balcão com a balança que já lá estava desde os tempos do Sr. Agostinho, seu avô, e do Sr. Artur, seu bisavô, numa família onde é tradição os primogénitos terem todos nomes começados por “A”.
Pão doce em forma de coração, que eu ia buscar de manhã bem cedo, a correr pela rua ainda mal o dia havia nascido, para poder comer ainda quente, com a manteiga meio derretida e ainda meio sólida, a alquimia que eu não compreendia a transformar o pão e a manteiga num só.
Ameixas pretas em forma de coração, apanhadas do quintal dos meus avós nos dias quentes de Julho, vermelhas e sumarentas por dentro, quando lhes rompia a casca com os dentes.
Seriam os corações também assim doces e sumarentos, com o sumo a escorrer-me pelo queixo em lágrimas rubras que me deixavam depois a pele peganhenta?
Essa questão perseguiu-me durante muito tempo.
Comecei, primeiro, de leve, só a provar, a mordiscar suavemente, depois com mais entusiasmo e, finalmente, mais confiante, a literalmente devorar os corações com que me cruzava, como o fazia, gulosamente, com as ameixas dos Verões da minha infância.
Alguns eram doces, uns em excesso, ao ponto de enjoarem, outros ácidos, outros ainda amargos. Um trouxe o sabor do desgosto, de uma tristeza imensa, outro o gosto frenético de um amor adolescente, outro o aconchego de um amor tranquilo e caseiro, outro ainda a ânsia de um amor platónico e não correspondido.
Todos, sem excepção, eu devorava avidamente; já não me era possível controlar a minha voracidade. Ou não o queria fazer.
“Mas porquê?” - perguntava-me.
Inevitavelmente, esta pequena semente de dúvida tornou-se algo muito pior; algo que, no início, eu não sabia descrever, mas que acabei por compreender mais tarde o que era realmente: a fome do meu coração.
Por muito que a tentasse saciar, ficava sempre esse vazio cá dentro.
Percebi isso alguns anos depois, ao conhecer o Samuel, não sei se foi o inevitável a meter-me à prova, se o facto de nos cruzarmos o precipitou.
Os sentimentos, aí, confundem-se e, desde o momento exacto em que aconteceu, percebi que algo nele me dava ânsias que eu não sabia que existiam, e muito mais profundas, mais selvagens, do que aquela sensação de fome que o coração sentia antes, como se apenas o coração que ele trazia no peito a pudesse saciar na sua totalidade.
No início, no primeiro instante de todos, fiquei confusa, atordoada, como se o chão me fugisse debaixo dos pés e o ar me abandonasse os pulmões.
Porque tinhas tu de vir balançar o meu mundo tão sólido?
Nesse dia, estava tranquilamente, na sombra do pátio sul do convento, demasiado quente nos Verões, a ler um romance daqueles que acabam muito mal, coisa proibida até aqui, entre estas paredes, sentada irregularmente em cima de uma saca de forragem esquecida, no único canto fresco e, pareceu-me, nesse momento, que um gato cinzento tinha saltado o muro pelo lado derrubado, imagino que vindo de uns pátios não muitos distantes, como acontecera já várias vezes, com passos elásticos e silenciosos, e que o tinha visto, pelo canto do olho, a esgueirar-se para dentro do arbusto de rosmaninho, fixando-me, por um segundo, com os seus olhos de gato curiosos e inquiridores, no preciso momento em que levantei os olhos do meu livro e os lancei na sua direcção.
Mas, depois, percebi que não: outros olhos, igualmente inquiridores, raiados de curiosidade e de algo misterioso, olhos de gato, afinal, me fixavam silenciosamente da outra ponta do pátio, na direcção do meu olhar, arrepiando-me os cabelos do pescoço, uma asfixiante sensação de frio e afogamento numa tarde de calor sufocante.
Tão semelhantes aos do gato que acabara de cruzar o claustro, que julguei tratar-se do mesmo olhar, ou, quem sabe, não tenha existido qualquer gato, naquela tarde.
Afinal, quem diz que os animais nos escolhem porque somos um pouco deles também, não deixa de ter a sua razão, e este gato cinzento já antes se gostava de passear por este lugar, habitualmente só meu, como se fosse o seu legítimo proprietário.
Como o fazem todos os gatos, na verdade, agora que penso nisso.
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