CAPÍTULO 4 – À MEIA-NOITE, O SINO DA IGREJA TOCA SEMPRE DUAS VEZES
O calor abrasador prendia as pessoas dentro de casa – com as suas ventoinhas ligadas ou, em certos casos, os seus potentes e eficazes ar condicionados, a vegetar em frente à televisão com um copo contendo mais gelo que Tang, em estado comatoso dentro das suas banheiras cheias até acima com água fria.
Ao fim do dia, na Sociedade Recreativa, jogava-se ao strip poker e comia-se salada de polvo, que era fresca e escorregava bem com a imperial geladinha.
Meia-noite em ponto, e o sino toca.
“Que curioso!”, comenta a D. Adélia, já só de combinação, “Nunca tinha reparado que, à meia-noite, o sino da Igreja toca sempre duas vezes!”
Repentinamente, esbugalha os olhos de forma absurdamente anormal, solta um esgar de sufoco e PUMBA! Cai para o lado, novamente de perna aberta! Assim, sem mais!
Os outros jogadores, estupefactos e estáticos com as cartas na mão – o espanhol a tirar discretamente um ás de espadas do bolso das calças – nem sabem como reagir. Maria Odete, surgindo na porta da cozinha a cada 10 minutos para espreitar as novidades, é a única que consegue ter a noção da realidade: “É melhor chamar o cangalheiro.”
O Índio George concorda logo e dirige-se aos pulinhos para a casa de banho, para retocar os seus longos cabelos negros.
Com um telefonema apenas, surge Júlio, o cangalheiro. Também conhecido por ganhar sempre os prémios de rapaz mais giraço do liceu e o de crânio a Matemática, Português, História, Filosofia, Literatura e Geografia. Hoje em dia, divide a profissão de cangalheiro com um part-time como angariador de bailarinas exóticas no estrangeiro. Que é como quem diz no Brasil, onde vai em trabalho/férias 4 a 5 vezes por ano.
Por vezes, em vez de sair Júlio, sai Xúlio, e foi assim que os Pedaços de Noz conseguiram o seu primeiro grande êxito.
Em menos de 20 minutos, Júlio e as suas bem torneadas e de vestimentas reduzidas assistentes Edneide, Máribéu, Gélzi, Candelária e a ucraniana Natasha preparam um velório à maneira.
Colocam a D. Adélia – mais composta, é claro – no seu caixão rosa bebé, que estava guardado em casa para uma ocasião especial, enfeitam a sala com gardénias e velas de cheiro a framboesa e, cumprindo um dos seus desejos finais, trajam-na com a camisa de dormir modelo Princesa Diana, que a D. Adélia tinha comprado em suaves prestações na loja da Odete Maria, também para uma “ocasião especial, que não era propriamente esta, mas que também servia.”
Pontualmente, chega também o Padre Frederico, ou não tivesse vindo de boleia com o Bruno do talho, na sua lambreta ultra-rápida, apesar de ter sido disputado por António Luís no seu potente mini vermelho de 79. Ganhou o Bruno porque era maior e conseguiu enfiar o António Luís no contentor do lixo, e o Padre teve de se render às evidências. Contra factos não há argumentos, é o que se diz, parece!
Madrugada dentro, estavam já os habitantes da Cadriceira presentes no velório meio adormecidos com o calor e completamente dormentes com o enjoativo aroma que se propagava das velinhas quando a Giséla Sóráia, entretida com o último livro da Margarida Rebelo Pinto, para passar o tempo, exclama: “Foi homicídio!”
Logo um calafrio percorre todo o salão da Sociedade Recreativa – onde se optou por realizar o velório – e os olhares ansiosos cruzam-se por várias vezes.
Odete Maria é rápida. “Foste tu!” – apontando para a sua sósia, a irmã Maria Odete – “Tu e aquele chá de acónito que tens ali na cozinha!”
“Não! Foste tu!” – exclama o Índio George, virando-se para o R.J. – “que eu bem te vi a trocar a garrafa de água por uma outra com aguardente!”
“Isso é impossível!” – diz o Bruno do talho. “A garrafa dela dizia Luso, mas o que tinha lá dentro era a aguardente vínica com 90% de alcóol que o meu tio Maximiano faz. Mas eu vi o Espanhol a dar-lhe um gato! E pensavas que ela era alérgica!”
“Pués eso no és berdad! Lo gatito Rebolho no hace mal alguno, solo caga.” – responde, ofendido, Xavi Fuentes. “Pero la noche pasada, cuando estube en la casa de Odete Maria – com Odete Maria, una grande maluca – la he bisto a enviar una munheca vudu a la víctima! Eso lo he bisto con estes dos olhitos mui guapos!”
“E aquela armadilha para ursos no quintal? Hum?? Quem poderia ser? Caiu lá o meu primo Marco, que agora está no hospital, coitadinho, nem se consegue sentar.” Lamuria-se R.J., o Fanhoso.
“Só pode ser... o Júlio! Era o único que as sabia construir, quando andávamos no liceu... e um funeral traz sempre lucro...”
“Pois, só que eu estava no estrangeiro. Mas houve quem visse o Índio George a pôr um balde com cogumelos à porta da vítima. Cogumelos esses, já o averiguei, da espécie Amanita muscaria – os cogumelos psicoactivos... e mortais!”
A Maria Odete defende-o – a D. Adélia nem tocou nos cogumelos. Mas ela viu a Débora, a transexual, a colocar o piano de 400 kg numa posição instável, e num lugar onde a vítima passava várias vezes, no caminho para o Centro de Saúde.
E viu o Bruno, no outro dia, a acelerar e a fazer pontaria, quando a D. Adélia ia a atravessar fora da passadeira.
E viu também, ela que “vê mais do que os comuns mortais, é claro, o António Luís, uma noite destas, em que ela estava cheia de insónias e foi para a janela arejar, com as luzes apagadas, por causa do calor, é claro, a dirigir-se sorrateiro ao Cemitério e a voltar com um esqueleto, que ela conseguiu saber depois, e isso já não se pode contar, que são assuntos da sua vida particular, que ele meteu o esqueleto no armário dos cobertores para ver se o raio da velha o abria e morria com o susto, mas isso não cabe na cabeça de ninguém, com este tempo ninguém vai ao armário dos cobertores, mais valia ter posto na despensa, onde a D. Adélia guarda os garrafões de água oxigenada, que, se calhar, foi disso que ela morreu, coitadinha, de intoxicação, com aquilo tudo, e não vi mais nada que, entretanto, já estava distraída com outra coisa, mas isso não interessa para aqui, que são assuntos particulares.”
E, enquanto Maria Odete explicava o seu ponto de vista, já voavam velas, coroas, castiçais, cadeiras, travessas de salada de polvo por aquela sala fora, já o R. J. agarrava o Bruno pelos cabelos, enquanto era açoitado pela Débora, que conseguia também dar com a coroa do “Amor de Mãe” no António Luís, que estava a despejar o jarro de sangria pela tromba da Odete Maria abaixo, que tinha trazido a ponta e mola e já estava a querer saltar para furar alguém a sério, não fosse o Índio George a morder-lhe a canela e a meter a mão no traseiro do Júlio.
O Espanhol já se tinha posto a milhas há muito, quando percebera que as coisas iam começar a aquecer. Ao fundo, com a sua batina preta e os seus óculos de sol, um homem de passado obscuro e desconhecido que veio do Brasil, o Padre Frederico está completamente absorvido pelo Super Mário na sua Nintendo DS Lite.
No momento seguinte, o Guarda Arnaldo, a dormir numa cadeira, acorda e levanta-se num repente. O barulho ensurdecedor que ecoava pela sala pára em uníssono enquanto todos olham para o homem que representa a lei, e ouve-se o sussurro do vento no calor da noite.
A um movimento do Guarda Arnaldo, que leva a mão ao bolso, a multidão grita e foge mais depressa que o Titanic do icebergue.
O guarda Arnaldo tira o telemóvel, lê a mensagem semanal do horóscopo TMN, espreguiça-se e vai à vida dele que se faz tarde.
Sozinha no seu próprio velório, com o Padre Frederico a um canto, imerso nas suas cogitações, a D. Adélia acorda estremunhada, larga duas opíparas bufas, exclama:
“Ai que mal me caíram aquelas ameijoas!”,
sai do caixão e vai para casa.
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