quinta-feira, 13 de novembro de 2025

2.2 - O vento que sopra na floresta e a névoa que a abraça.


O por do sol, visto do cimo da serra, costumava ser sublime, independentemente do estado meteorológico do dia.

Ontem, as cores tornavam-no mágico.

Quase parecia impossível ter sido apenas ontem.

O vento levantara e as nuvens negras que vinham lá de longe, do mar, chegaram rápidas e densas, misturando os tons de cinza e chumbo com os alaranjados e os rosas.

Era melhor começar a descer, não fosse a chuva chegar, como se adivinhava.

Hoje já não se conseguia ver mais nada na floresta. As sombras e os ruídos que se tinham detectado nestes últimos dias não queriam dar sinal hoje.

Lá em baixo, o autocarro com a última paragem em Montalegre acabara de deixar alguns miúdos, que riam e se empurravam. As aulas ainda estavam leves, e os dias eram luminosos, chegavam com a luz da tarde e pareciam ter mais tempo para tudo.

Uma rajada um pouco mais forte quase lhe arrancou o casaco que levava apoiado nos ombros.

Seria melhor vesti-lo, o tempo estava a ficar mais agreste.

Os miúdos meteram-se pelo caminho da floresta, um atalho para chegar à povoação mais depressa. Hoje não seria um bom dia para isso, estava a escurecer demasiado depressa.

No meio das árvores, viu uma luz, mas depois não tinha a certeza, porque um raio se mostrou quase ao mesmo tempo.

Era a tempestade de que falavam nas notícias. A noite de hoje, e depois mais um dia e uma noite.

Aqui em cima iria cair forte.

Uma bátega atingiu uma das pedras grandes, na descida para a aldeia.

Não iria tardar muito.

Apressou o passo, talvez se conseguisse encontrar com os miúdos. Embrenhados pelo meio das árvores, provavelmente nem se aperceberam da aproximação do temporal.

Estava mesmo a ficar um estado adequado à celebração de sexta-feira 13 que se aproximava, a data que animava os dias habitualmente tranquilos da aldeia de vez em quando e que atraia alguns turistas e excêntricos e curiosos ou apenas alguém que se tinha perdido pelos caminhos da serra.

Mais uns metros e estava lá em baixo. Acelerou o passo, o tempo estava a escurecer, o vento a levantar, e já sentia gotas de água.

Mesmo assim, aqui em baixo, junto às árvores, a visibilidade era muito baixa. Uma névoa começava também a envolver o arvoredo, a descer pelas copas até ao tronco, mais rapidamente do que desejava.

Conseguiu finalmente alcançar a floresta.

Ouvia os miúdos, ainda riam, mas pareciam-lhe longe. 

As vozes vinham de vários pontos da floresta. Seria a névoa a dissipar o som, ou estariam perdidos na escuridão?

Um novo raio, e pareceu-lhe ver um vulto à sua direita.

Algo não estava bem.

Ligou a lanterna do telemóvel. Como é que não se tinha lembrado disso?

Chamou para a floresta. Conhecia os miúdos todos. Tinham saído sete do autocarro.

Deviam estar a chegar a este lado.

Não, já deviam ter chegado.

Chamou novamente, mais alto.

De resposta, uma gargalhada, que ecoava pelas árvores.

Ouvem-se passos, alguém se aproximava, mas pelo caminho de fora, o alcatroado.

“Vi os miúdos sair do autocarro e vir pela floresta, mas eles ainda não chegaram.”, disse a mulher de cabelo preso, com algumas madeixas já soltas a esvoaçar em volta do seu rosto.

“O vento está mais forte, não se vê nada, e já está a começar a chover!”, acrescenta, aflita, a outra que vinha com ela, com o avental de gatos.

Mais dois homens se aproximam.

Reconheceu um deles, o velho caseiro do solar. Já não tem idade para andar aqui, mas devia estar no café quando se deu o alvoroço, e não é capaz de ficar quieto, se puder ajudar em alguma coisa.

Novo relâmpago e algo se move entre as árvores.

O ruído do vento é ensurdecedor, há já ramos a estalar, temos de sair daqui depressa.

Onde é que estão os miúdos?

Porque é que não saem deste lado?

Ouve-se um uivo.

Não é um cão, de certeza.

É demasiado forte para ser o de um cão, e está demasiado perto.

Mais telemóveis se levantam com as lanternas acesas.

Alguém tem a coragem de entrar no arvoredo.

É a filha dela que lá está, esta mulher não tem medo de nada. Vejo-a a agarrar num ramo caído com a outra mão. Temo por quem se atrever frente a ela.

Grita pela filha, chama o seu nome, a sua voz ecoa pela névoa.

Outra voz se levanta.

Já não são só os pais, já se juntam vizinhos.

Um trouxe uma lanterna grande e potente, que usa na oficina para ver os motores dos carros.

A escuridão já baixou totalmente, o vento mal nos deixa ouvir uns aos outros e a chuva começou a cair com intensidade.

Não há por onde fugir.

Já nos embrenhámos pela floresta, tentando não nos perder também.

Finalmente, as vozes respondem-nos.

As lanternas apontam para aquele lado, não o do trilho onde estavam.

Algures no meio do arvoredo e da escuridão, perderam o caminho.

Um a um, guiados pelas vozes, começam a surgir os seus vultos.

Um, depois outro, duas raparigas juntas, que choram aflitas e nunca se largaram, e mais outro.

Chegam seis. Falta um.

Gritam por ele.

Não há resposta.

Apontam as lanternas, os ramos parecem sombras a correr no meio das árvores, a esconderem-se atrás dos troncos.

Silêncio, só o vento e a chuva e os trovões cada vez mais frequentes.

Um não aparece.

Chegou a noite, e um não apareceu.



sexta-feira, 31 de outubro de 2025

2.1 - Noite escura de tempestade e uma pilha de livros difícil.

A noite era de tempestade, e ia ser longa.

João fizera um desvio pelo supermercado do bairro para ir buscar uma sopa para o jantar, e apressara-se a meter mãos à obra.

Nada como ter um prazo final para dar aquela dose de motivação que falta à nossa vida!

Deixou o saco com as compras na cozinha e dirigiu-se à sala com a caixa que trouxera da garagem.

A vizinha que morava no r/c direito e que tinha sido a porteira do prédio antes de se reformar, mas que também estava perfeitamente capacitada para ser uma alta patente no FBI, combinara logo por WhatsApp com uma empresa de limpezas de confiança a barrela a fundo do seu apartamento.

O que queria dizer que teria de dar alguma ordem à papelada que tinha em cima da mesa da sala.

Cadernos de apontamentos, fotocópias e impressões de documentos da Torre do Tombo que precisara de consultar, notas soltas de consultas a livros na biblioteca, blocos notas cheios de post-its e sublinhados de marcadores fluorescentes com os esquemas e os resumos, tudo em diversos montes em cima da mesa.

Seria para arquivar em local próprio, mais tarde, quando tivesse mais disponibilidade.

Era-lhe impensável deitar fora papéis que continham informação útil.

Tinha um problema com isso: acabava por se interessar sobre todos os temas a que se referiam os trabalhos para os quais era chamado, e desta vez não tinha sido diferente.

Assim, fez os possíveis para não se distrair enquanto enfiava na caixa, por ordem de trabalho, os papéis que falavam de Endovélico e romanos e lusitanos e templos pagãos e ainda mais deuses ancestrais para aprofundar um dia destes, e papéis que falavam sobre fortalezas de defesa de fronteiras medievais e de rios que faziam essas fronteiras e os motivos pelos quais tinham sido mudadas essas fronteiras e castelos no cimo de montanhas e o silêncio das pedras e um bom licor para aquecer a noite, e depois papéis sobre pinturas rupestres e cálculos de passagens de cometas há milhares de anos atrás e sobre tipos de cometas, e também diversas genealogias e cronologias e biografias e, sabia lá bem porquê, informação turística sobre estações de combóio desactivadas transformadas em alojamento local no interior do país.

Estava feito, e não demorara assim tanto tempo.

Voltou à cozinha, aqueceu a sua sopa e serviu numa tigela. Creme de tomate. Trouxera uma embalagem com mini queijos mozzarella, que atirou lá para dentro, assim como um punhado de croutons de alho e orégãos.

Aqueceu água na chaleira para fazer uma infusão de hortelã e alcaçuz. Isto tinha de ser bem digerido.

A mesa da cozinha não estava muito mal, apenas um pano fora do sítio e umas migalhas de pão, de um dia destes.

Passou um pano húmido, já que estava em modo civilizado, que era o seu estado normal depois de deixar uma tarefa importante terminada, meteu um individual, os talheres, o guardanapo de pano a combinar com o individual, ambos feitos pela mãe, que adorava oferecer os seus trabalhos de costura, a sopa e a chávena para a infusão.

A tempestade lá fora piorara, o vento estava muito forte, a chuva que começara a cair aumentara de intensidade.

João apagou a luz da cozinha e deixou apenas a do exaustor ligada. Acendeu uma vela perfumada, a mãe oferecia sempre disto nas celebrações, achava hygge e também achava que toda a gente precisava de velas perfumadas e de bolachas de aveia do Ikea em casa, e quem era ele para contrariar esta teoria.

Da cozinha via a tempestade pela janela da sala, a emoção em grande plano.

No telejornal tinham noticiado o temporal, que se sentiria mais forte nas zonas litorais, e até meio do país.

Uma noite de tempestade, depois um dia inteiro e mais uma noite. Na madrugada seguinte, estaria a caminho das ilhas britânicas.

A sua viagem estava marcada para o dia seguinte.

Resolvera aceitar a proposta de se deslocar a Montalegre, mas ia de autocarro.

Ia de taxi até Lisboa, depois de expresso até Chaves, e depois mais um autocarro até Montalegre.

Ia ficar com as costas quadradas, e as pernas entorpecidas com as horas de distância que a viagem prometia, mas não tinha vontade de conduzir para tão longe, e podia ler, dormir e colocar as ideias em dia durante esse tempo.

A árvore lá fora, na rua, em frente à janela da sua sala, dobrava-se com a força das rajadas de vento.

A chuva estava impiedosa, batia com força nas vidraças, ao ritmo das rajadas.

A sopa aconchegou-o. Pegou na tigela e meteu-a junto à restante loiça suja. Não tinha de se preocupar com isto agora.

Agarrou na chávena e dirigiu-se mais perto da janela. Talvez fosse boa ideia fechar os estores, mas a paisagem era bela demais.

Sempre tivera uma atracção por observar tempestades na natureza.

Não era tão divertido quando estava ensopado dentro de uma tenda de campismo de uma pessoa, menos impermeável do que pensara, afinal, mas não temos 20 anos para sempre, e era por isso que já não se aventurava em acampamentos. Agora, nada menos que um quarto de hotel ou de uma pensão, com uma cama confortável e água quente canalizada.

Um relâmpago mais forte, logo seguido pelo ruído do trovão fê-lo dar um salto para trás, com a surpresa, e a escuridão que se fez sentir na casa despertou-o para o momento presente.

A luz fora abaixo.

Podia ter sido só uma avaria do exaustor.

Não, a rua ficara mais escura.

Tentou o interruptor.

Não, não funcionava. A luz fora-se. Era provável que não voltasse tão cedo. Teria sido um cabo partido e não estavam condições de andar gente na rua pendurada em postes.

Era mesmo questão de aguardar que a tempestade amainasse.

Sentou-se no sofá.

Não estava assim tão desarrumado, felizmente, apesar de ter dormido aí mais vezes do que na cama nas últimas semanas.

Estava algo atrás das suas costas, a incomodá-lo. Qualquer coisa de tecido. Puxou e viu que era uma camisola de mulher. Uma camisola de Inverno. Fez as contas de cabeça e pensou que sim, era provável.

O facto de não ter sido contactado por causa da camisola podia ter menos a ver com a estima pela dita ou pela sua necessidade, e mais pelo seu temperamento. Enfim, não se pode agradar a toda a gente e, certamente, a dedicação de João aos seus interesses era maior que que a sua dedicação a pessoas novas, que depressa perdiam a sua novidade e se diluíam no vácuo do dia a dia.

Meteu a camisola de parte, pelo menos podia metê-la a lavar e devolvê-la. Não era um ogre, era apenas distraído com as coisas normais da vida.

A camisola fê-lo lembrar-se que tinha a sua própria mala para preparar.

Combinara com o táxi para as 8 e meia da manhã. Tinha tempo de chegar ao Oriente e beber um café, mesmo que apanhasse trânsito. O seu autocarro era às 10 horas.

Não fazia ideia de quanto tempo ia ficar, mas calculava que umas quatro t-shirts e outras tantas calças de ganga serviam. Mais uma ou duas camisolas, para o caso de ficar fresco. E os calções de banho para o caso de ficar calor. Nunca se consegue adivinhar, nesta altura. Roupa interior, escova e pasta de dentes, um pente, a máquina de barbear, alguma medicação para emergências.

Precisava de cadernos. Levantou-se e abriu um armário da sala, onde coleccionava cadernos vazios. Era sempre prático tê-los em casa.

Olhou para a pilha de livros que coleccionara desde o início do Verão, tentando resistir à tentação de ir buscar um velho e gasto volume do João Aguiar sobre nuvens e crenças pagãs e pessoas que se refugiam em aldeias no Minho.

Aproximou-se com a vela na mão. Sentia-se dentro de uma novela gótica victoriana, uma personagem que olha as estantes à luz da vela enquanto a tempestade desaba atrás dele.

Talvez um policial nórdico fosse uma boa sugestão. Ou talvez não. Quem é que no seu juízo perfeito vai para o meio do nada ler uma história assustadora que tem como cenário o meio do nada? Dadas as circunstâncias, talvez fosse mais prudente levar um livro sobre gatos e ruas cheias de livrarias em Tóquio, escrito por uma autora japonesa. E também este, com um café de gatos.

A pilha moveu-se um pouco. Talvez não caísse.

Colocou os cadernos e os livros em cima da mesa, para levar para o quarto quando fosse fazer a mala.

Teria de ser à luz da vela.

Não tinha de se preocupar com despertador, usava habitualmente o telemóvel para isso, e a essa hora já estava a pé.

Não se podia esquecer do carregador, isso sim.

No silêncio, só se ouviam os ramos e a chuva a fustigar a janela.

Nada de televisões com o volume alto.

Até conseguia ouvir os vizinhos a rir com o filho. Provavelmente, também a jantar à luz das velas. A mãe também lhes oferecera velas no Natal passado…

Já tinha avisado os pais que ia estar uns dias fora.

A mãe tinha ido visitar uns amigos no Sabugal, estava a ajudá-los com a pequena quinta que tinham, estava na altura de apanharem as abóboras e as maçãs, mas ele sabia perfeitamente que era só uma desculpa para se atarefarem na cozinha a fazer doces e biscoitos e a conversar sobre tudo e mais alguma coisa, e depois passarem a conversa para o alpendre com os biscoitos de canela que tinham feito nessa tarde e uma infusão de lúcia lima com as folhas acabadas de apanhar do arbusto.

O que o lembrou das bolachas Ikea, que se apressou a ir buscar ao pote, servindo-se também de mais um pouco da sua infusão, sempre com a vela atrás.

Se calhar podia reler a Abadia de Northanger pelo caminho. Ou A Ilustre Casa de Ramires.

Um novo relâmpago iluminou a rua. Estava tão perto.

Pousou a chávena e o pote das bolachas na mesinha de apoio que tinha ao lado da janela, junto a um confortável cadeirão de leitura.

À primeira vista, a sua sala parecia uma cópia mais actualizada da sala do tio, e a manta de crochet com quadrados coloridos típica da menina Cecília também fazia parte do kit de conforto do seu cadeirão, tal como a mesa e a proximidade da fonte de luz natural e da paisagem.

Abriu a janela, sabia lá ele para quê. Sentiu a força do vento na cara. Nesta ponta da janela não era atingido pela chuva.

Na distância, via o contorno da Serra de Sintra. Adorava a sua vista. Inspirava-o e, muitas vezes, dava-lhe motivação.

Um novo raio cortou os céus.

Magnífico!

A tempestade estava assustadora, porém. Iria deixar muitos estragos.

E a chuva não parecia abrandar, pelo contrário.

Com pouca vontade, achou mais cauteloso fechar os estores.

Iria fazê-lo assim que terminasse a sua bebida quente.

Levou a chávena e as bolachas para a cozinha, fechou os estores de toda a casa, com a vela na mão, pegou nos livros e nos cadernos que deixara em cima da mesa e foi até ao quarto.

Confirmou que a janela estava fechada e baixou estes estores também.

Acendeu mais duas velas - sim, eram imensas -, tirou a mala do armário e abriu-a em cima da cama, começando a colocar a pouca roupa que ainda tinha lavada e arrumada.

Afinal, tinha de levar só dois pares de calças de ganga, e as velhas de fato de treino.

Em cima, colocou um dos livros e um dos cadernos.

Os outros levaria na sua mala a tiracolo, com os documentos e o dinheiro.

Meteu o telemóvel na mesa de cabeceira, e atirou para dentro da mala com o carregador, inútil esta noite, e uma powerbank. 

Quase se esquecia do pijama. Meteu um na mala. Havia de encontrar algum sítio onde lavar a roupa.

Fechou a mala, confirmou se tinha tudo na outra mala e deixou junto à porta.

Não havia mais nada a fazer hoje.

A vizinha tinha a chave de reserva, para deixar entrar os pessoas da empresa de limpeza, os papéis estavam arrumados, a loiça estava em modo caos, e parecia que o seu armário tinha explodido em roupa usada para dentro do quarto.

Tinha um dia longo pela frente, amanhã, e uma noite inquieta para hoje.

Iria tentar dormir o que conseguisse, embalado pela tempestade.




quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Aquilo que te espreita da floresta. 1 - Prólogo. Um almoço em frente ao mar e uma tempestade a adivinhar-se.

O mar estava revolto, apesar dos últimos dias terem sido tranquilos.

O céu, que ainda ontem exibia um nítido tom de azul, estava hoje sombrio e ameaçador.

O vento levantava-se agora de forma súbita, quase lhe levara o chapéu.

Quem diria que ainda ontem se sentia o Verão, havia pessoas na praia, a esplanada estava cheia, e hoje Outubro mostrava definitivamente a sua cara e não se via vivalma.

Se calhar porque era segunda-feira de um vulgar mês de Outubro, e as pessoas estavam atarefadas nos seus empregos, e não sentadas numa esplanada à beira de uma praia que era composta. basicamente, por rochas e mar bravo.

Como ele.

Não se podia dizer que não trabalhava, é claro.

Mas hoje - e nas próximas duas semanas - decidira-se a tirar uma folga.

Escolhera pessimamente o dia.

Ou não.

Afinal, até era do seu agrado a paisagem à sua frente.

Não podia ter escolhido dia melhor, pensou.

Talvez fosse melhor almoçar dentro do bar, porém.

Viu, à distância, no passadiço de madeira, que resistia ainda ao tempo e às condições atmosféricas agrestes típicas da zona, o vulto do seu tio e padrinho, com quem tinha combinado o encontro de hoje.

Este acenou-lhe, mostrando que o tinha visto.

Mas depressa fez uma pausa para observar o mar.

Provavelmente, a pensar no que o seu homónimo Afonso Henriques teria achado desta massa de água selvagem, como se isso fosse novidade para ele, que dedicara toda a sua vida ao estudo deste rei e que devia ser das pessoas que melhor conhecia o tema.

O professor Afonso Henriques despertou do seu devaneio imaginativo com um suspiro.

A realidade também lhe era agradável.

Vinha a este lugar aprazível almoçar com o seu sobrinho João, um hábito e sítio habitual entre eles, quer fosse para trocar ideias em relação a algo que lhes estivesse a bloquear o raciocínio no trabalho ou na vida pessoal ou, como hoje, para comparar o resultado de casos terminados, um e outro.

Afonso Henriques fora professor de História Medieval numa das universidades mais conceituadas e avançadas da capital, e investigador de História Medieval Portuguesa e, apesar de já se ter reformado, continuava ainda muito activo.

Uma das suas actividades preferidas era a investigação genealógica, já que tinha grande capacidade para descodificar os documentos, além de um instinto menos académico e mais espiritual do que desejava, para encontrar os ditos documentos.

Aliado a isto, tinha muita experiência a fazê-lo, e uma maior ainda motivação.

Habitualmente, fazia-o por curiosidade e prazer, para surpreender os amigos.

Ocasionalmente, era convidado para o fazer profissionalmente.

Fora esse o caso, desta vez.

Não decorrera com a tranquilidade expectável e, à distância de quase três meses, o transtorno de ter sido raptado já desanuviara, e Afonso via agora todo este processo como uma aventura divertida à brava, em que conhecera pessoas muito interessantes e em que vira com outros olhos - mais nítidos e apaixonados - as pessoas que já conhecia há muito tempo, como a menina Cecília, que antes o aquecia com infusões originais e mantas coloridas, mas que agora lhe aquecia também o coração, e os pés, à noite.

Era tudo isto que tinha hoje para contar ao sobrinho, mas receava que o almoço só daria para um resumo bem espremido.

Sim, é provável.

O melhor seria deixar a história completa para um serão lá em casa: uma refeição acolhedora, boa companhia, a salamandra acesa, mantas no sofá, um chá na mesinha de apoio e um gato no colo.

Juntou-se a João na esplanada.

Abraçaram-se.

Já não se viam há mais de um mês.

Apoiaram-se os dois na balaustrada da esplanada, a ver e a ouvir o mar durante mais alguns minutos.

Não eram precisas palavras entre ambos.

Entraram no bar. Estava vazio, hoje. O único funcionário, o do costume, Nuno de seu nome, era a pessoa mais carrancuda, anti-social e monocórdica à frente de um balcão de café.

Era perfeito, e o preferido deles, mesmo assim.

Acenou com a cabeça à sua entrada, compreendendo que iam sair dois pratos do dia para a mesa da janela alta.

A televisão estava sem som, num canal de música clássica. Nada de movimentos súbitos e cores vibrantes, apenas um jovem bonito de fraque a tocar violoncelo.

A rádio passava uma estação de clássicos, o que queria dizer músicas dos anos 90, perfeitamente conhecidas pelo funcionário e por João, mas já não tanto por Afonso, não porque não ouvisse música dessa época, mas porque o seu gosto musical se prendia antes com bandas nórdicas com elementos cabeludos vestidos de preto, vozes gruturais, uma voz de soprano feminina e uns solos de guitarra harmoniosos. E, nesse aspecto, gostava de se manter actualizado, se bem que sempre fiel aos seus velhos conhecidos.

Bem, enfim, Afonso sabia da existência dos Pearl Jam, é claro, mas gostava mais da característica que partilhava com o Eddie Vedder, que era apreciar bons vinhos.

O café era construído em madeira, já a precisar de um pouco de verniz em alguns lugares, e a decoração também era toda em madeira: em vez de prateleiras, viam-se caixas de vinho, de fruta e velhas gavetas colocadas nas paredes, com livros, flores, fotografias e pinturas de clientes, as mesas e as cadeiras eram desirmanadas, encaixadas de forma criativa, subtraídas das casas das avós e tias diversas dos proprietários - eram três -, algumas pintadas de forma amadora, o que lhes dava um ar artístico e ao sítio uma aparência muito acolhedora.

Um velho gato cor de laranja dormia tranquilo numa estrutura feita exclusivamente para ele, com caixas de fruta, sobras de madeira, pedaços de ramos de árvores, sisal e uma sweatshirt desactivada, que fora colocada junto à janela.

As ditas avós e tias também vinham, com frequência, ao bar, perfeitamente conscientes de que se estavam a sentar nas suas anteriores cadeiras, mas lançando olhares orgulhosos aos seus descendentes.

Além das cadeiras, mesas e aquele louceiro de 1880 que agora exibia um fulgurante tom de vermelho carro de bombeiro, com chávenas de todos os tipos e feitios lá dentro, também partilhavam as receitas, e era por isso que agora lhes era servida a única opção de prato do dia de segunda-feira, que era a lasanha de espinafres e ricota, o principal motivo da escolha do lugar no dia de hoje.

A tarde iria fazer-se longa, pelo que decidiram pedir, para os dois, uma garrafa de D. João V de rótulo azul escuro, da adega cooperativa local.

João já não pensava no último caso em que trabalhara, fácil de desembaraçar, resolvido à sua satisfação e arrumado na sua prateleira de casos resolvidos.

Não, o que estava a ocupar a sua mente era o pedido que recebera hoje de manhã, uma estranha mensagem no telemóvel que lhe pedia que abrisse o mail com urgência.

Tinha tirado estas duas semanas para pousar os pensamentos e organizar a sua vida pessoal.

A casa estava de pantanas, tinha papéis por tudo o lado, os livros acumularam-se em cima de uma mesa da sala, que devia ser de refeições, caso tivesse a audácia de convidar alguém a este tumulto, já não olhava para eles há meses, e via no fundo da pilha os que trouxera da feira do livro - são sempre tantas promoções - com toda a intenção de ler.

O mesmo se podia dizer do armário da roupa e da cadeira do quarto, e da cozinha, onde copos de vinho se iam juntando a chávenas de café e canecas de chá.

Suspirou, frustrado. Derrotado.

Tinha mesmo de resolver este problema.

O último trabalho tinha sido tão simples e, mesmo assim, deixara-se afundar nele, esquecera que o resto do mundo existia.

Sim, tinha de o fazer. Uma divisão por dia. Parecia-lhe bem.

Desde que não se distraísse a folhear os livros e a organizar os papéis todos por tema e por data.

Pelos deuses, já sabia que isto não ia resultar!

Tinha mesmo de chamar ajuda profissional!

Sim, era isso mesmo!

Era o que ia fazer!

Hoje ainda!

Suspirou de alívio, e tragou o resto do vinho do copo, enchendo-o e ao do tio mais uma vez.

Já se sentia mais leve.

Um problema estava resolvido.

Estava satisfeito com a solução. Afinal, ele era bom a encontrar soluções.

A lasanha estava divinal. A quantidade certa de queijo. O que queria dizer imenso, claro! O molho de tomate mais saboroso e cremoso que alguma vez provara, feito com tomates bem maduros e com umas pitadas de orégãos na mistura. E os espinafres frescos, que ele sabia virem da horta dos proprietários.

No entanto, ainda cabia uma fatia do cheesecake basco que vira na vitrine de exposição.

Olhou para o tio.

Partilhavam o mesmo pensamento.

Café e cheesecake.

E depois uma caminhada pelo passadiço, e até à praia.

O telemóvel vibrou com uma mensagem.

“Preciso de uma resposta em breve.”

Sim, João sabia.

Também já sabia qual a resposta. Tinha dificuldade em resistir a um desafio.

E este caso era, definitivamente, um desafio irresistível. Uma aventura.

Na verdade, todos eram.

Mas havia algo neste que o atraía.

Agora, vamos ser realistas. Podia estar a ser enganado. era demasiado aliciante. Havia qualquer coisa que não soava bem.

Talvez o tio tivesse uma perspectiva sobre isso.

É essa a conversa que desenvolvem na caminhada.

Será seguro aceitar?

E porque não?

O pedido por email era claro.

Algo se estava a passar em Montalegre nestes últimos dias. Algo de estranho e incomum. Mais do que o habitual, enfim.

Era perfeitamente normal a imaginação andar mais solta num lugar tão fora do tempo e do espaço como Montalegre.

João nunca lá tinha estado, mas amigos seus sim.

Um lugar um pouco excêntrico em algumas ocasiões, mas perfeitamente tranquilo nos restantes dias do ano.

A próxima sexta-feira era dia 13, e queriam que ele estivesse lá para ver que eventos estranhos - não o festival habitual do dia - se davam ultimamente.

E por eventos estranhos descreviam vultos e sombras a passar, alterações súbitas de temperatura, ventos ainda mais súbitos, uivos e guinchos a altas horas da noite, vindos da floresta.

Perfeitamente assustador.

Para quem acreditasse nessas coisas, o que não era o caso de João, que conseguia manter a sua habitual frieza perante sintomas tão adversos.

Afonso ouviu enquanto fixava uma rocha particularmente grotesca, na praia lá em baixo. Não perdeu uma palavra do que o que o sobrinho disse.

Virou-se calmamente para ele, com um brilho nos olhos e um meio sorriso a espreitar do seu rosto.

Sim, ele aceitaria o desafio sem pensar muito.

Aliás, provavelmente, na sua mente, estava já a preparar a mala e os livros que ia levar.

João sorriu de volta.

Eram muito parecidos.

Até o seu percurso profissional era semelhante.

João estudara História Medieval, como o tio, quem sabe porque sempre admirara aquele tio solitário, de ar sério, mas tão corajoso e aventureiro debaixo de uma embalagem perfeitamente correcta, mas não tinha a mesma obsessão por D. Afonso Henriques.

A sua pancada era a Ordem de Cister em Portugal, e tinha orgulho em ter estado já em todos os mosteiros da ordem no nosso território.

Aliás, conhecia mais mosteiros do que castelos, e do que casas de amigos.

Isto acontecera principalmente porque, numa ocasião em que acompanhara o tio ao Mosteiro de Arouca, ainda adolescente, se apaixonara perdidamente por uma estátua da infanta-rainha D. Mafalda Sanches e quisera saber tudo sobre ela, mas disso ninguém precisava de estar a par, e nem o tio se tinha ainda apercebido disso, apesar de João ter uma foto da dita imagem na sua sala, em frente à sua secretária de trabalho.

Trabalhava agora na mesma universidade, mas não tinha aulas designadas para este semestre, estava com a investigação enquanto um colega melhorava as suas capacidades lectivas, e João dava apoio a este e aos alunos dos mestrados e dos doutoramentos, com as suas pesquisas.

O que queria dizer que se podia mais facilmente distrair com outros temas, como o do trabalho anterior, em que se deslocara a um sítio arqueológico perto de Estremoz para decifrar outros eventos estranhos na altura do equinócio - que foram explicados na mais perfeita lógica - ou no início do Verão, em que o atraíram a Sortelha por motivos semelhantes e que o fizeram ganhar um novo lugar preferido e a amizade dos gatos locais.

Tinha 54 anos, idade para ter juízo, é certo, mas também idade para ter uma juventude bastante curtida e agradavelmente independente, o que fizera com que fosse uma pessoa desenrascada desde cedo e tivesse grande prazer na sua própria companhia, se bem que também gostasse de conviver.

Com as pessoas certas, é claro.

Era, ainda, alto e magro, usava roupa discreta e tinha preferência por sapatilhas all star pretas e brancas e por um chapéu preto oferecido pela mãe há uns anos, depois de ver um dos rapazes da sua banda preferida com um, e de ter achado que, como ficava bem a um rapaz alto e magro, também havia de lhe ficar bem a ele.

Tinha razão, é claro, e João ganhou estima ao chapéu, quase nunca se separando dele.

Felizmente, também ainda tinha o cabelo todo, liso e numa tonalidade castanha escura, quase preta, que usava curto, mas já começara a ganhar uma madeixa branca no lado esquerdo.

Se tivesse a genética paterna, daqui a alguns anos teria o cabelo completamente branco, mas era mil vezes preferível à genética materna, em que a estética era mais ao estilo Santo António, apesar de João sempre ter adorado o seu avô Chico.

O vento levantou e parecia não ter vontade de se ir embora tão cedo.

Definitivamente, o Verão acabara, e o outono decidira aparecer em grande estilo, obrigando toda a gente a entrar em casa para se abrigar.

João e Afonso dirigiram-se aos seus carros, no parque de estacionamento acima da praia.

Despediram-se combinando novo encontro para daí a duas semanas, com a promessa, de um e de outro lado, de trazer novidades, e entraram nos respectivos carros enquanto o primeiro raio cruzava o céu.




2.2 - O vento que sopra na floresta e a névoa que a abraça.

O por do sol, visto do cimo da serra, costumava ser sublime, independentemente do estado meteorológico do dia. Ontem, as cores tornavam-no m...