sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

CAPÍTULO 6 – QUEM MORA AO LADO

Aviso à navegação que ainda aqui anda perdida em 2025:

Andava para aqui em arrumações e percebi que a Odisseia do Tacho, que tinha estreado no blog em 2006 (a primeira blog-novela, mas não a última, porque fiz mais outras…) e que ficou arrumada em 2009, quando o desliguei (requiescat in pace), ainda não estava na sua totalidade aqui, no blog ressuscitado.

Assim, para variar um bocado destas destas ideias doidas que me passam pela cabeça no meio do Inverno, vou meter aqui os restantes episódios (em suaves prestações), sem edições, acrescentos, alterações ou actualizações à época em que vivemos, uma coisa que podemos considerar “vintage”, ou “isto agora era tudo censurado” (muito, mas mesmo muito provavelmente), ou “nesta altura eu não tinha filhos, e muito menos juízo” (espera, também ainda não tenho juízo).

Nesta altura, também tinham muito mais tempo para escrever, porque levava com umas quantas horas de CP do Cartaxo (essa metrópole alcoólica) para Lisboa (basicamente turistas e imperiais) e vice-versa, mais um mini-autocarro cheio de pensionistas animadas e à beira da morte e cheias de enfermidades ao mesmo tempo, de Santa Apolónia para a Graça e vice-versa, e agora, valha-nos Deus, ando com o caderno cheio de post-its amarelos lá do trabalho e escrevo enquanto estou à espera que acabe a aula de natação ou um evento qualquer da agitada vida social dos meus filhos (muito mais borbulhante que a minha).

Por isso, considerem-se avisados, e divirtam-se!

Afinal, talvez tenham de levar com histórias mais desorientadas da caixa dos parafusos do que o habitual, mas é o que temos.



CAPÍTULO 6 – QUEM MORA AO LADO


Noite de Lua Cheia na Cadriceira.
Ao longe, ouve-se o uivo solitário de um cão vadio.
O edifício da Sociedade Recreativa flutua na escuridão...
...sim, depois de varrerem uma tachada de pipis feita pela mão habilidosa do Índio George (...pois...), acompanhada de pão caseiro quente a sair do forno e umas imperiais frescas à maneira, a malta pesada da Cadriceira aproveitou este momento de calmaria para ver o filme “I’ll see you in my dreams”, trazido pelo Cláudio, o gótico, irmão da Joaninha das Autópsias, um rapaz magricela, que usa aquelas calças pretas esterlicadas, vive de noite e pensa que é vampiro. A sua carapinha acentuadamente MarcoPauliana é que não é da mesma opinião, infelizmente...
Ora estava já toda a gente assim meio acagaçada e atenta ao mínimo ruído ou movimento, que se tornavam mais evidentes com os singelos cálices de Vinho do Porto que já tinham entrado nos organismos, quando o Índio George aproveita para ir com o Ricardão da oficina, que come tudo o que mexe, é uma fatalidade, enroscar-se carinhosamente para o wc de serviço.
Eis senão quando vêm os dois a correr lá de dentro, esbaforidos e de calças na mão, perseguidos por uma criatura negra de olhos brilhantes a alta velocidade e a grunhir de forma furiosa... era Eusébio, o suíno Triturador-Aspirador, que fugiu de forma misteriosa da sua barraca no quintal dos pais do guarda Arnaldo, onde estava a ser vigorosamente engordado para uma valente patuscada, e que provoca um monumental cagaço em quem estava na sombria sala da Sociedade Recreativa...
Completamente transtornado, a fugir do edifício pela porta principal a correr à frente da D. Adélia como se tivesse o Encapuçado da Gadanha atrás dele de patins em linha, o Bruno do Talho vomita mesmo em cima dos pés do Júlio Cangalheiro, que ia a entrar acompanhado da Tatiana, da Irina e da Neide Elizete.
O Xavi Fuentes, que mora perto e que já vê tudo a andar à roda, opta por se dirigir a casa na posição “de gatas pela calçada abaixo”.
O guarda Arnaldo, sempre composto, não revela o mínimo indício de estar na fase mais próxima do coma alcoólico.
O pensionista do andarilho ainda andou agarrado ao Índio George, porque entretanto já tinha perdido o andarilho. Quem o arrecadou foi o Ricardão, porque acha que aquilo ainda pode dar jeito para o arranjo do SLK da D. Adélia, que ele lá tem na oficina com a buzina enguiçada.
Bem, para dizer a verdade, o resto do pessoal ficou a recuperar forças encostado ao balcão, ou a um dos pinheiros em redor da Sociedade Recreativa, enquanto o Eusébio se enroscou finalmente para uma soneca ao pé das grades de Sagres, escuro como uma sombra, e perfeitamente camuflado naquele canto.
Já cá fora, o R.J., o Fanhoso, com o fresco da noite, tem a brilhante ideia de ir cantar uma serenata à janela da Odete Maria, e logo ali foi acompanhado pelo Cláudio, o Índio George, o António Luís, o guarda Arnaldo, o pensionista do andarilho, o espanhol, o Bruno, todos atestados de imperial, amêndoa amarga, brandymel e sabe-se lá mais o quê, que acharam esta a melhor ideia desde os soutiens com almofadinhas.
Ao som de “Uptown Girl” em tons algo desordenados, a D. Adélia acerca-se à varanda, deslumbrada, convencida que, desta vez, o Bruno é seu... porque os nossos amigos se enganaram e, em vez de ir para a frente da casa da musa do R.J., branca com cortinas azuis e vasos de sardinheiras coloridas na varanda, dirigem-se resolutos para a casa da D. Adélia, um mamarracho com azulejos de casa de banho verde fundo de garrafão, típicos dos anos 60, do lado oposto da rua...
Farto de tanta emoção contrariada e de tanta energia gasta em equívocos – e ajudado por uns quantos graus de Brandymel no sangue, o pensionista, mandando a busca do andarilho às de vila-diogo, encurrala a D. Adélia (agora numa perseguição ainda mais cerrada ao Bruno do Talho) naquela viela ao pé do centro de Saúde, e beija-a o mais loucamente que lhe permite a sua dentadura solta!
E acaba-se o assunto por aqui!! Irra!!


(Semana 3 de 2025)

domingo, 12 de janeiro de 2025

Aquilo que se esconde nos corredores escuros.

Gonçalo acordou com o som de um clique.

Parecia ter sido a porta, mas achava que a tinha fechado quando entrara no gabinete.

Estava agora entreaberta, como se algo tivesse acabado de passar por ela.

Olhou para o relógio no seu pulso, oferecido pela mãe no seu 10º aniversário.

Três da manhã.

O seu turno terminara às 9h da noite, mas deixara-se ficar e, aparentemente, distraíra-se com o tempo.

Novamente.

Não era costume ficar até tão tarde, porém.

Aliás, era a primeira vez que acontecia: adormecer em cima dos papéis e ficar até de madrugada no seu pequeno gabinete, outrora uma cela de um monge, no convento onde funcionava o departamento militar onde trabalhava.

Pelo menos, não tinha sido para cima da máquina de escrever.

Assim, só tinha ficado com o cabelo levantado do lado esquerdo, e com a marca do punho da camisa na cara, e não duas teclas na bochecha e uma risca de tinta preta e vermelha no meio da testa.

Que barulho o tinha acordado?

Estava tudo desligado, com excepção do candeeiro no tecto. Nem aquecimento, nem rádio, nada.

Olhou em volta e viu que estava tudo na mesma, desde o início do seu turno.

As mesmas duas cadeiras, a secretária, uma mesa de apoio e o cadeirão de leitura, junto à janela, a estante, o armário com os romances clássicos que trazia para ler às escondidas no seu tempo livre, a chaleira, o bule, duas chávenas e uns potes com hortelã, cidreira e o Earl Grey que a irmã lhe enviava por correio de Londres, onde vivia.

Alguns papéis caídos no chão. Sim, isso já era estranho.

Gonçalo não era descuidado, e estes papéis estavam no molho da mesa de apoio, não debaixo do seu braço, e muito menos espalhados pelo chão.

A janela estava bem fechada, não passava vento por ali.

Como é que tinham ido parar ao chão?

Ainda se devia sentir atordoado do sono.

Aquelas listagens que estivera a dactilografar, com as vitualhas das despensas do quartel, tinham sido demasiado monótonas para a sua sanidade, ainda via sacos de farinha às dúzias e latas de molho de tomate a passar em magotes em frente aos seus olhos.

E Gonçalo não era uma pessoa dada à imaginação!

Gonçalo Lopes fora outrora um entusiasmado cientista e matemático, mas decidira deixar a sua timidez natural vencer e transformara-se num recruta e, mas tarde, militar exemplar, com muito jeito para contas e organização.

Tinha 24 anos e vivia pacatamente com uma gata preta de nome Artémis, assim baptizada pela sua mãe, fervorosa apreciadora de mitologia grega e de estátuas de mulheres desnudadas, num modesto apartamento com um quarto, um outro quarto transformado em biblioteca, uma cozinha, uma saleta cheia de livros encaixados em todos os recantos, uma casa de banho com uma janela onde se via o nascer do sol, e uma marquise soalheira também transformada em biblioteca.

Pois é, Gonçalo gostava de livros, e da sua vida tranquila e sem sobressaltos, sem emoções além das que vivia nos seus livros e sem amores senão platónicos, nomeadamente a paixão assolapada pela menina Eva da mercearia, desde que chegara a esta vila, e que não lhe davam chatice nenhuma à vida quotidiana.

Na prática, não aparentava ser mais do que um militar solitário e aborrecido, que vivia para o seu trabalho, que era transcrever listagens mais aborrecidas do que ele.

Agora, não havia nada a fazer.

Estava acordado e ouvira um barulho.

Os seus sentidos estavam alerta, atento a outros ruídos, mas não se ouvia nada nos corredores escuros do outro lado da porta.

Esteve assim um minuto, ou cinco, ou dez.

Silêncio.

Começou depois a ouvir mais sons de cliques, mas não eram cliques, era o som da chuva a bater com força na vidraça. Olhou na direcção da janela, mas lá fora só se via a escuridão.

O ruído do temporal que começara a cair distraíra-o para a janela, mas a sua atenção estava agora na porta do gabinete, que estava definitivamente entreaberta.

Isto não era, de todo, hábito seu.

Alguém estava no corredor, mas a esta hora não estaria mais ninguém no edifício além dele. O vigilante não vinha para aqui a esta hora, tinha a certeza.

Espreitou pela porta, abriu-a um pouco mais.

Estava escuro, é claro.

Voltou à sua secretária e tirou uma lanterna da terceira gaveta do lado direito.

Verificou que funcionava.

Aproximou-se da porta, colocou a mão na maçaneta, respirou fundo, puxou-a e aventurou-se no comprido e frio corredor.

Estava vazio e silencioso, como esperava.

Caminhou um pouco mais, com mais coragem, também.

Porque é que lhe estava a faltar a coragem?, perguntava-se.

Avançou até ao meio.

Depois um pouco mais. Levantou a lanterna acima da cabeça e avistou o resto da distância até ao final, quando se cruzava com o outro corredor.

Nada. Ninguém.

Voltou-se e caminhou na direcção do seu gabinete.

A chuva continuava a bater impiedosa nas vidraças, mas lá fora o escuro era absoluto. Seria normal?

Sentiu uma brisa na cara. Também não era normal.

Agora, do outro lado.

Não via nada.

De onde vinha a aragem?

Depois viu-a.

Piscou os olhos sem acreditar.

“Eva?” - perguntou.

Ela olhou para ele, mas não respondeu.

Seria ela? Era tão parecida, as mesmas feições, os mesmos olhos, o mesmo tom de cabelo, o mesmo sorriso escondido.

E, ao mesmo tempo, era tão diferente.

Mais baixa, talvez. O cabelo apanhado de forma diferente.

Um vestido que não era deste tempo, ensopado, sujo de lama e rasgado.

Eva, ou a imagem que ele via e que se parecia com Eva e que ele julgava ser um sonho aproximou-se.

Era parecida, mas não era ela.

“Ajuda-me.” - disse - “Estou perdida.”

Disse, mas não disse verdadeiramente. Gonçalo viu os lábios moverem-se, mas a sua voz só a ouviu na sua cabeça.

“Raios, Gonçalo!” - pensou - “Os romances escondidos no armário e a paixão platónica pela menina Eva deram cabo da tua sanidade. Estás a vê-la em todo o lado!”

Não se apercebeu, mas aproximou-se mais, o que qualquer pessoa de bom senso não faria.

Sabia lá ele onde andava agora o seu bom senso!

A imagem de Eva apontava para a porta do seu lado direito, mas não era bem a porta, era… a parede?

Apontou a lanterna e olhou para a parede com atenção.

A tinta tinha uma cor diferente, como se tapasse um remendo antigo.

Atrás de si, sentiu que outro vulto se aproximava.

Conseguiu espreitar atrás do ombro pelo canto do olho.

Era um homem com o hábito dos monges antigos.

Também apontava, mas para um ponto específico na parede.

O sonho estava cada vez mais estranho.

A cara dele também lhe era familiar, mas não se lembrava de onde.

Tinha a certeza de já o ter visto, porém.

Gonçalo reparou que, nesse ponto, uma parte da tinta parecia descascar. Tocou com a mão e a tinta começou a sair, mostrando que realmente existia ali um remendo na parede.

Raspou com mais vigor e deixou a descoberto uma pedra rectangular.

Tirou a esferográfica que tinha no bolso e tentou desencaixá-la, raspando em volta.

Não foi fácil, mas tinha tempo.

O que ocultaria aquela pedra?

Quase a conseguia desencaixar.

Era só mais um esforço.

Os dedos já estavam magoados e dormentes, e viu sangue num deles, mas não ia desistir quando estava tão perto.

Finalmente, a pedra soltou-se.

As que restavam à sua volta não estavam tão presas, e foi mais fácil retirá-las.

A curiosidade espicaçava-o e levantou a lanterna para espreitar o buraco que realmente se revelava dentro da parede.

Deu um passo para trás, ou talvez três, mas não chocou contra o homem com o hábito do monge, como julgara que acontecia.

Parecia que o tinha atravessado.

Olhou-o, espantado.

E reconheceu-o.

Era um dos figurantes que andava pelo convento a interagir com os visitantes. Já o vira tantas vezes.

Ainda ontem estava no espaço que fora a enfermaria.

Como não percebera que não era real?

Olhou a imagem de Eva, que tapava agora a cara com as mãos.

Aproximou-se novamente do buraco na parede e apontou a lanterna até ver tudo o que estava lá dentro.

Um vestido claro, sujo de lama e rasgado.

O cabelo da mesma tonalidade num esqueleto envelhecido.

A imagem de Eva olhava agora para si e sorria.

Gonçalo compreendeu o que queria.

Na manhã seguinte, este mistério teria de passar para as mãos legais, e o que escondia seria finalmente revelado.

Ouviu a voz dela na sua cabeça apenas. “Obrigada.” E viu-a desaparecer lentamente no corredor.

O homem com o hábito de monge mantinha-se a seu lado.

Quando ele falou, Gonçalo não ouviu a sua voz na sua cabeça, mas a ecoar pelo corredor.

“Ela estava perdida, era preciso ajudá-la a encontrar o caminho.”

Com tudo o que acontecera, ou por julgar estar ainda dentro de um sonho, Gonçalo sentia-se inspirado nessa noite, e perguntou ao homem: “E tu também estás perdido? Posso ajudar-te?”

“Não, de modo nenhum! Estou aqui apenas para me divertir a passear pelo convento e a ler os livros da biblioteca, como fazia quando aqui vivia. A tua pequena biblioteca também é muito interessante. Especialmente os livros escondidos.” Sorriu.

“Como é que sabes que eu…?” - perguntou Gonçalo, absolutamente escandalizado. 

É claro que ele sabia, se andava por onde queria à hora que lhe dava na real gana!

Inicialmente, ficou furioso com tamanho atrevimento, mas depois sorriu também, e depois ainda riu à gargalhada!

Riam agora os dois e o corredor ecoava os risos.

Porque não, afinal?

Porque havia ele de esconder os livros? Porque havia de se encolher para caber nos parâmetros dos outros quando havia tanto para viver e descobrir, mesmo na sua vida tranquila e pacata?

O homem com o hábito de monge acenou e entrou na escuridão do corredor.

Gonçalo olhou para o buraco na parede, onde um dia ocultaram o cadáver de uma jovem e que agora jazia exposto a pedir respostas a perguntas.

Respirou fundo e expirou lentamente.

Já sentia os dedos e estavam magoados. Tinha de ir tratar disto.

Voltou ao seu cubículo, a cela de um monge de um passado longínquo e percebeu que a chuva já não batia com força na janela.

Agora, só o silêncio.


Gonçalo acordou com o sino a tocar.

Olhou para o relógio de pulso que a mãe lhe oferecera no seu 10º aniversário.

Eram sete da manhã.

Olhou em volta e viu que estava tudo na mesma, desde o início do seu turno.

As mesmas duas cadeiras, a secretária, uma mesa de apoio e o cadeirão de leitura, junto à janela, a estante, o armário com os romances clássicos que trazia para ler às escondidas no seu tempo livre, a chaleira, o bule, duas chávenas e uns potes com hortelã, cidreira e o Earl Grey que a irmã lhe enviava por correio de Londres, onde vivia.

Agora, no entanto, o seu cadeirão estava ocupado por um homem vestido com o hábito de um monge, que espreitava por cima do seu exemplar d’ ”Os Fidalgos da Casa Mourisca”.

Sorria à sua expressão estremunhada a despertar no mesmo sítio.

Gonçalo sorriu-lhe de volta.

Não tinha sido um sonho.

Ou, pelo menos, nem tudo tinha sido sonho.

Um dia destes, tinha de lhe perguntar o nome.

E tinha de arranjar outro cadeirão de leitura.

Mas não agora.

Levantou-se e tentou ajeitar a farda.

Talvez fosse boa ideia passar a cara por água, dar um jeito ao cabelo e confirmar se não tinha duas teclas marcadas na bochecha e a impressão da fita da máquina de escrever na testa.

Tinha algo muito importante e urgente para fazer.

Não podia perder mais tempo.

Saiu do edifício e deu-se conta que não chovera no mundo real, apenas no do sonho.

No entanto, um nevoeiro cerrado que não deixava ver as casas do outro lado da estrada competia com o nascer do sol, dando ao exterior uma tonalidade de sonho.

Um tempo perfeito para fantasmas, pensou.

Mesmo no nevoeiro, ou na escuridão, Gonçalo sabia perfeitamente qual o caminho que o levaria a Eva. 



Semana 2 de 2025 (yay!)

domingo, 17 de novembro de 2024

O castelo na penumbra

Sintra, Novembro de 1827.


O vulto do jovem homem de cabelo loiro passou de novo, rapidamente.

Desta vez, quase o conseguiu ver pelo canto do olho.

Sorriu.

Ele prometera isso, na verdade.

Apagou a vela em cima da sua mesa de trabalho, levantou-se, e aproximou-se serenamente da janela quase escura, deixando a sala iluminada apenas pelos restos das brasas na lareira que se extinguia.

Talvez, assim, ele se aproximasse.

Talvez perdesse a timidez.

William não sentia medo do espectro. Não tinha medo de nenhum, e este, particularmente, trazia-lhe recordações doces e longínquas, se bem que demasiado fugazes para o seu desejo.

Para o desejo de ambos.

William sempre acreditara que uma vida inteira nunca seria suficiente para extinguir o calor que existira entre eles. Nem duas, sequer.

E tinham tido direito a apenas alguns escassos meses.

O vulto do rapaz loiro escondia-se agora atrás de um grosso cortinado de veludo, as madeixas iluminadas por um ténue raio de luar vindo do exterior, num fim de dia que se carregava de nevoeiro, o olhar com brilho próprio, apesar da sua consistência algo etérea.

Como ele conhecia aquele doce brilho!

Quantas vezes passara os dedos pelas sobrancelhas macias, as pálpebras claras. Tão fundo mergulhara no verde intenso do seu olhar.

O mesmo verde do paraíso onde se tinham encontrado, há muito tempo atrás, e que mal reconhecia agora, olhando pela janela, como se esse mundo fosse numa outra dimensão.

O passado, o Verão, o sol, a floresta vibrante; o presente, o escuro outono, a penumbra, as árvores gigantescas e assustadoras com os seus ramos como braços com garras nas pontas, sedentos de almas perdidas.

Estava a ficar velho, pensava, suspirando, a vislumbrar espectros a flutuar pelos lugares onde ele vagueava agora, em solidão, perdido em recordações, em momentos que existiam apenas nas sua memória e na de mais ninguém vivo, em coisas que não poderiam nunca mais voltar, ou ser vividas por outras pessoas.

Passou as mãos pelos olhos e inspirou mais fundo.

Expirou devagar.

Talvez isso fizesse com que a sua mente voltasse a ficar leve e sã.

Espreitou pelo canto do olho.

Não.

A sombra atrás do cortinado mantinha-se no mesmo sítio.

Agora, com um sorriso atrevido, que mal se adivinhava, provocava-o.

Soltou uma gargalhada amarga.

A sua imaginação era muito boa a pregar-lhe partidas!

Exactamente o mesmo trejeito rebelde que ele tinha!

E eis que desaparecera de novo, deixando no ar um fugaz aroma a pão acabado de sair do forno e de pele suada pelas lides da juventude, que tão bem conhecia.

Se fechasse os olhos, conseguia voltar àquele fim de Verão em que entrara, pela primeira vez, naquele paraíso verde e fresco, depois de dias incómodos de pó e suor numa viagem interminável, e em que se cruzara com o rapaz que o olhava como se só existissem os dois no mundo.

Oh, como se sentira perdido do tempo e do espaço naquele reino de árvores gigantescas, de pedras que podiam esconder segredos, e nevoeiro no pico da serra em alturas imprevistas, com o sussurrar do vento pelas folhas e o marulhar do mar lá ao longe, que se conseguia ouvir na escuridão da noite.

Como se apaixonara ardentemente pelas ruelas sem fim, perdido em pensamentos e sensações, a aperceber-se da névoa cada vez mais densa a cada dia, as árvores a mudar a tonalidade, a sua alma a ficar mais presa ao lugar e ao rapaz com que se cruzava todos os dias, se tivesse coragem de passar pela pequena padaria num canto estreito no centro da vila.

Sentia ainda hoje na pele o primeiro toque que trocaram quando se cruzaram num caminho solitário no meio do nada, numa outra dimensão, num outro mundo, numa outra época sem tempo, uma troca de electricidade estática ao mesmo tempo que o céu estalava acima deles num cenário que se tornara escuro.

O primeiro raspar ténue dos lábios ao mesmo tempo que a chuva os atingia, e a tempestade a desabar em cheio já no seu abraço sôfrego.

Deuses, como correram rápidos aqueles dias!

Como foram lentos e lhe marcaram o ser até aos dias de hoje!

Como desejava que esses dias nunca tivesse terminado, que não tivesse sido obrigado a sair daquele lugar perdido no tempo e no espaço.

Quem sabe se tudo não se mantivesse intacto ainda, quem sabe se não teria saído por um portal para a vida cá fora, e aquele lugar mantivesse imutáveis aqueles momentos.

A lareira ficou finalmente escura, deixou de crepitar, e a sala tornou-se demasiado lúgubre, mesmo para ele, que se considerava uma alma negra.

Estivera perdido no reino mágico onde vivera os melhores momentos da sua vida, um lugar que percebera imediatamente não fazer parte deste mundo de vícios, frustrações e maldade assim que pusera os pés dentro dele.

Dava-se agora conta que, durante todo o resto da sua vida, tentara reviver esses momentos, recriá-los.

Procurara por eles em vários lugares.

Procurara por ele dentro de várias pessoas.

Homens, mulheres, novos, velhos, claros ou escuros ou um meio termo.

Muitas pessoas.

Demasiadas.

Sempre em busca daquela forma de olhar, daquele modo de sorrir, da expressão daquela alma.

Mas não o tinha conseguido alcançar jamais.

Suspirou.

Pensara voltar tantas vezes.

E desistira outras tantas mais.

Mas algo no seu peito ansiara por esta dimensão, algo que não o deixara raciocinar sequer, e que o tinha feito meter-se a caminho sem pensar se estava preparado, se era conveniente, se era justo.

O espectro escondera-se por esta noite.

Seria inútil esperar um sinal que fosse.

Apesar disso, William sentia-se a flutuar até junto dele, no meio da imensidão de árvores daquela estrada estreita, a sentir a chuva nos ombros, a ensopar-lhe os cabelos e a roupa, a arrepiar-lhe a pele, não sabia se o frio da água, se a névoa em redor ou se da proximidade do rapaz do seu sonho.

William olhou sem ver o jardim à sua frente.

Não estava perfeito.

E nem o castelo.

A sua obra final, um castelo de fantasias lúgubres, cujo maior mérito era aparecer subitamente a seguir a uma curva, no meio de árvores densas, aos viajantes perdidos.

A sua janela estava numa óptima posição para poder testemunhar o temor nas suas faces.

Imaginava se alguma vez o iria considerar completo.

Não. Claro que não.

Faltava algo na penumbra.

Faltava a sua presença.



Sintra. Novamente. Finalmente. Desde sempre. Para sempre.

Novembro de 1842.

William sabia que regressar a este lugar fora o instinto certo.

No fundo do seu ser, sempre soubera que era aqui o sítio a que verdadeiramente pertencia, que nunca o havia deixado realmente.

Hoje, mesmo no cimo da serra, um nevoeiro denso cobria quase completamente o arvoredo mas, fixando os olhos, conseguia vislumbrar um palácio majestoso de cores vistosas, que tinha a certeza não existir ali neste tempo cronológico.

Piscou os olhos para aclarar a visão, e deixou de o ver de todo.

Agora, apenas o arvoredo denso e uma breve névoa em redor das ruínas de um velho convento.

Passados todos estes anos, a sua vida quase toda, e o caminho era o mesmo: o palácio antigo do rei, com as chaminés que o destacavam na paisagem e os azulejos mais belos que alguma vez vira, as ruelas de calçada, casas altas e estreitas, as janelas com flores coloridas, os cheiros, por Deus! doces, fritos, refogados, carnes cheias de gordura e temperos, um desvario para os sentidos, e o pão. Sempre o pão.

O cheiro do pão da sua pele.

Mais além na estrada, as casas escasseavam e as árvores dominavam.

Deixava de ouvir os sons do mundo dos homens, mas não se conseguia aperceber se isso acontecia lenta ou subitamente. Apenas que já não os escutava.

Os seus passos tornaram-se mais lentos. Conhecia de cor esta parte do caminho. Conseguia fazê-la de olhos fechados.

Estes últimos anos que aqui estivera, repetira todos os dias o mesmo percurso.

Agora, reparava, o céu começara a cobrir-se de nuvens e ameaçava chuva. A penumbra aproximara-se e ficara presa nas colinas.

Acontecera de repente, como naquele dia da sua juventude.

O seu coração começou a bater mais depressa.

Reconhecia aquele lugar e aquele tempo e aquele momento.

Quem sabe, sem se dar conta, William tivesse entrado novamente no portal que achava não passar da sua imaginação.

Tinha-o buscado durante tanto tempo!

Estava cansado.

Tão cansado.

Um pouco mais à frente, via umas escadas de uma casa que já não era habitada. Poderia sentar-se um pouco.

William sabia o que vinha a seguir. Tinha sido paciente durante tanto tempo. Não teria de esperar muito mais.

As nuvens tornaram-se mais carregadas, a escuridão começou a tomar conta do que o rodeava mas, finalmente, conseguia vê-lo surgir agora nitidamente, a dirigir-se ao seu encontro no caminho, trazendo luz e uma brisa quente.

Não mudara nada, estes anos todos.

Enquanto William não passava agora de um velho que mal se conseguia manter nas pernas, Théo não parecia passar dos 16 anos que tinha há 70 anos atrás.

À medida que Théo se aproximava dele, William deixava de ver a penumbra, e só enxergava a luz que o rodeava, as árvores estranhamente verdes e frescas para um entardecer de Novembro.

Théo tocou-lhe a fronte com ternura, William soltou uma lágrima solitária e fechou os olhos, adormecendo para sempre.



Théo olhou em redor, acordando do sonho que tivera em pleno passeio.

Há já algum tempo que não voltava a este lugar, a este caminho.

Nunca se esquecera de William, e voltar ali fazia com que os momentos que passaram juntos tivessem ficado presos em algum lugar do tempo.

O seu castelo não passava agora de uma ruína cheia de musgo, hera e conchelos, a tornar-se cada vez mais o lar de seres misteriosos e ligeiramente assustadores que William desejara que fosse. Iria ficar orgulhoso de o ver agora.

Não lhe contara o seu segredo.

O que era.

Para William, Théo tinha sido um jovem que conhecera, por vezes um espectro escondendo-se atrás de uma cortina de veludo verde escuro, e depois um sonho que imaginara nos últimos minutos da sua vida.

Mas não para ele.

O seu corpo físico continuava a ser o de um jovem de 17 ou 18 anos, nem sabia bem, mas a sua alma corria os caminhos do mundo desde o alvor dos tempos.

Quando conheceu William, pensou que talvez o quisesse transformar no que era, mas nunca teve a coragem necessária. E o seu encontro fora tão breve!

E, pelos deuses, como se arrependia!

Agora seguia sozinho pelos séculos, com a clara e dolorosa certeza de que deixara desaparecer uma alma igual à sua.

Como poderia ter sido tudo tão diferente.

Os tempos mudavam, o palacete já não existia para os homens, mas Théo acreditava ver William ainda a espreitar pelo que restava da janela com a sua vista preferida.

Sorriu ao passar por umas escadas no caminho que tantas vezes percorrera.

Fora ali que se encontrara com William pela primeira vez, e fora ali que se despedira dele.

Pelo canto do olho, apercebeu-se de vultos no cimo da estrada, a surgir da curva que ali fazia. Por momentos, parecia-lhe vê-lo novamente, os seus olhos escuros e densos e longos cabelos negros.

Mas não, eram apenas uns jovens modernos, vestidos com roupas pretas e vermelhas e rendas brancas e longos casacos de cabedal, os cabelos compridos como se usava há alguns séculos atrás e olhos com sombras negras.

Théo habituara-se depressa a estes tempos rápidos e intensos de final de século XX. Passava perfeitamente despercebido, mesmo que o achassem um pouco excêntrico.

O que lhe parecera William sorriu-lhe, não tirando os olhos dele, como se só existissem os dois no mundo. Parecia ter uma luz em redor do seu rosto, algo de fim de Verão a flutuar em seu redor.

Théo sorriu-lhe de volta.

Sim, talvez se voltassem a encontrar.




CAPÍTULO 6 – QUEM MORA AO LADO

Aviso à navegação que ainda aqui anda perdida em 2025: Andava para aqui em arrumações e percebi que a Odisseia do Tacho, que tinha estreado ...