Desde bem cedo na madrugada se ouve da casa de Maria Odete o martelar furioso dos dardos na grossa porta de madeira.
Maria Odete tem como vício, desde há longos anos, para descomprimir os nervos, atirar dardos venenosos a um poster de tamanho real da Dina que ela tem na porta da arrecadação. Desde o Festival da Canção de 92, em que Maria Odete participou, e que foi ganho pela Dina com aquela do “Peguei trinquei e meti-te na cesta...”, que Maria Odete nutre e acarinha um ódio visceral à cantora, não podendo sequer ouvir falar no seu nome sem ter um súbito e arrasador ataque de urticária...
Quando isto acontece, algo não vai bem na vida de Maria Odete...
... e era este, precisamente, o caso. Maria Odete tivera, tarde nessa noite, uma coisa que se poderia designar por um marcante “encontro imediato em 8º grau”, com o novo padre, nas traseiras da loja de Odete Maria, sua companheira de placenta, quando foi lá espreitar para ver se dava conta do paradeiro do António Luís, que há uns dias não lhe punha a vista em cima.
Ora, aqui, parece-me que vamos ter de fazer uma retrospectiva...
Maria Odete e Odete Maria não nasceram na Cadriceira. Não passaram a infância a trepar as árvores nos cabeços nem a roubar laranjas no pomar do Xico, o psicopata da Cadriceira, e nem uma adolescência parada no tempo.
Não. Estas nossas amigas surgiram de forma misteriosa na Cadriceira, há alguns anos, vindas de uma aldeia semelhante em Viseu onde faziam mais ou menos a mesma coisa e, devido ao seu carácter essencialmente rústico, depressa se integraram no frufru do dia a dia.
No entanto, nunca nada se soube da sua vida anterior. Até hoje. Maria Odete não poderá esconder mais o que a perturba no seu afinal obscuro passado – um romance com o jovem e sedutor padre da aldeia que a viu nascer.
Mas também, se todas as moçoilas tivessem abandonado a sua vida depois de andar às cambalhotas com o padre, hoje Corvos à Nogueira estaria às moscas...
Isto porque António Cruz, conhecido como Tom Cruz (lê-se Tóme Cruije), além do tórrido romance que teve com a bela e fogosa Maria Odete, manteve, ao mesmo tempo, outros... – com a sua irmã gémea Odete Maria, com a prima Alzira, com a Arminda da peixaria, com a Hipólita Frígida da contabilidade, que depois desta aventura passou a usar lentes de contacto, a optar por mini-saias, decotes até aos fundilhos e por tons vermelhos em geral...
Ora devem-se agora perguntar, curiosos, os assíduos leitores desta “Odisseia do Tacho”: “Mas o que raio tem isto a ver com a história?”
Pois bem, o Padre Frederico, que presidira já ao velório da D. Adélia, desaparecera/fugira/eclipsara-se misteriosamente... de novo..., pelo que foi necessário solicitar outro emissário do Senhor, de um modo geral, para as ovelhas da Cadriceira não se deixarem tresmalhar e, de um modo mais específico, para realizar uma cerimónia finalmente à beira de se concretizar – o casamento da D. Adélia... aos 72 anos, depois de ter ficado noiva mais de 20 vezes...
O feliz noivo, a horas de conseguir este feito ainda inatingido, era o pensionista do andarilho. Também conhecido por Adérito, e famoso pelas suas malhas aos ferrinhos, nas actuações do Rancho Folclórico da Sociedade Recreativa da Cadriceira.
“O que eu mais gosto do Xico
É que ele já não é vivo”
A cerimónia tem início com uma marcha nupcial composta pela própria noiva, em homenagem ao seu primo Xico, o serial killer da Cadriceira nos anos 70, que faleceu há muitos anos atrás, pensa-se, com um ataque de lombrigas. É que ele foi para o hospital distrital e nunca regressou... Acabou por se tornar numa Lenda Urbana...
Baseada num poema calorosamente estimado por ela, é entoada à capella pelos acólitos Messias e Bráulio, que acompanham a cerimónia, com a parceria do Bruno do talho ao órgão.
Mas como nem tudo são rosas... o noivo tinha a seu lado a Ti Faustina, a minutos de se tornar a sua sogra...
Ti Faustina, uma peculiar idosa de 90 anos, mãe da D. Adélia. Uma velhota mirrada que nem uma noz e enrugada que nem uma passa, que assiste ao casório sentada num velho banco de 3 pés, mesmo ao lado do noivo, para o poder açoitar vigorosamente com a sua bengala de madeira de carvalho à vontade, ao som de expressões lúcidas tipo: “Vê lá se atinas, seu moinante!”, ou “Olha lá o que fazes, seu vadio, que eu estou a espreitar-te!”.
A típica viúva portuguesa – pequena, de aspecto frágil, sempre trajada de negro, com o seu inseparável lenço na cabeça, o seu xaile nas costas, também negros, e da sua mortífera bengala.
Completamente desdentada, com buço até ao queixo e uns olhos pequeninos, alterna o seu tempo entre as actividades da igreja com as outras beatas, e o carpir a viuvez no cemitério, com as outras beatas...
Acompanhada da sua irmã e braço direito desde há 93 anos, a Ti Custódia (fisicamente muito parecida, a esta altura do campeonato...), a Ti Faustina gere um ramo de negócios obscuros, tendo como sequazes o Xavi Fuentes e o Don Corleone, e metendo à pala de um nome fictício – Floribella Hardcore – vários produtos de grande procura na loja da Odete Maria, “Paraseuparaíso”, que agora, além de sex-shop, abriu a secção de congelados e de produtos esotéricos.
Bem lá correu tudo de acordo com o previsto... excepto a festa... porque o novo padre voltou a cair em tentação... e desenvolveu um escaldante romance novamente com Maria Odete... e também com a Odete Maria, com a Débora, com a Giséla Sóraia...
(Semana 6 de 2025)
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