A noite era de tempestade, e ia ser longa.
João fizera um desvio pelo supermercado do bairro para ir buscar uma sopa para o jantar, e apressara-se a meter mãos à obra.
Nada como ter um prazo final para dar aquela dose de motivação que falta à nossa vida!
Deixou o saco com as compras na cozinha e dirigiu-se à sala com a caixa que trouxera da garagem.
A vizinha que morava no r/c direito e que tinha sido a porteira do prédio antes de se reformar, mas que também estava perfeitamente capacitada para ser uma alta patente no FBI, combinara logo por WhatsApp com uma empresa de limpezas de confiança a barrela a fundo do seu apartamento.
O que queria dizer que teria de dar alguma ordem à papelada que tinha em cima da mesa da sala.
Cadernos de apontamentos, fotocópias e impressões de documentos da Torre do Tombo que precisara de consultar, notas soltas de consultas a livros na biblioteca, blocos notas cheios de post-its e sublinhados de marcadores fluorescentes com os esquemas e os resumos, tudo em diversos montes em cima da mesa.
Seria para arquivar em local próprio, mais tarde, quando tivesse mais disponibilidade.
Era-lhe impensável deitar fora papéis que continham informação útil.
Tinha um problema com isso: acabava por se interessar sobre todos os temas a que se referiam os trabalhos para os quais era chamado, e desta vez não tinha sido diferente.
Assim, fez os possíveis para não se distrair enquanto enfiava na caixa, por ordem de trabalho, os papéis que falavam de Endovélico e romanos e lusitanos e templos pagãos e ainda mais deuses ancestrais para aprofundar um dia destes, e papéis que falavam sobre fortalezas de defesa de fronteiras medievais e de rios que faziam essas fronteiras e os motivos pelos quais tinham sido mudadas essas fronteiras e castelos no cimo de montanhas e o silêncio das pedras e um bom licor para aquecer a noite, e depois papéis sobre pinturas rupestres e cálculos de passagens de cometas há milhares de anos atrás e sobre tipos de cometas, e também diversas genealogias e cronologias e biografias e, sabia lá bem porquê, informação turística sobre estações de combóio desactivadas transformadas em alojamento local no interior do país.
Estava feito, e não demorara assim tanto tempo.
Voltou à cozinha, aqueceu a sua sopa e serviu numa tigela. Creme de tomate. Trouxera uma embalagem com mini queijos mozzarella, que atirou lá para dentro, assim como um punhado de croutons de alho e orégãos.
Aqueceu água na chaleira para fazer uma infusão de hortelã e alcaçuz. Isto tinha de ser bem digerido.
A mesa da cozinha não estava muito mal, apenas um pano fora do sítio e umas migalhas de pão, de um dia destes.
Passou um pano húmido, já que estava em modo civilizado, que era o seu estado normal depois de deixar uma tarefa importante terminada, meteu um individual, os talheres, o guardanapo de pano a combinar com o individual, ambos feitos pela mãe, que adorava oferecer os seus trabalhos de costura, a sopa e a chávena para a infusão.
A tempestade lá fora piorara, o vento estava muito forte, a chuva que começara a cair aumentara de intensidade.
João apagou a luz da cozinha e deixou apenas a do exaustor ligada. Acendeu uma vela perfumada, a mãe oferecia sempre disto nas celebrações, achava hygge e também achava que toda a gente precisava de velas perfumadas e de bolachas de aveia do Ikea em casa, e quem era ele para contrariar esta teoria.
Da cozinha via a tempestade pela janela da sala, a emoção em grande plano.
No telejornal tinham noticiado o temporal, que se sentiria mais forte nas zonas litorais, e até meio do país.
Uma noite de tempestade, depois um dia inteiro e mais uma noite. Na madrugada seguinte, estaria a caminho das ilhas britânicas.
A sua viagem estava marcada para o dia seguinte.
Resolvera aceitar a proposta de se deslocar a Montalegre, mas ia de autocarro.
Ia de taxi até Lisboa, depois de expresso até Chaves, e depois mais um autocarro até Montalegre.
Ia ficar com as costas quadradas, e as pernas entorpecidas com as horas de distância que a viagem prometia, mas não tinha vontade de conduzir para tão longe, e podia ler, dormir e colocar as ideias em dia durante esse tempo.
A árvore lá fora, na rua, em frente à janela da sua sala, dobrava-se com a força das rajadas de vento.
A chuva estava impiedosa, batia com força nas vidraças, ao ritmo das rajadas.
A sopa aconchegou-o. Pegou na tigela e meteu-a junto à restante loiça suja. Não tinha de se preocupar com isto agora.
Agarrou na chávena e dirigiu-se mais perto da janela. Talvez fosse boa ideia fechar os estores, mas a paisagem era bela demais.
Sempre tivera uma atracção por observar tempestades na natureza.
Não era tão divertido quando estava ensopado dentro de uma tenda de campismo de uma pessoa, menos impermeável do que pensara, afinal, mas não temos 20 anos para sempre, e era por isso que já não se aventurava em acampamentos. Agora, nada menos que um quarto de hotel ou de uma pensão, com uma cama confortável e água quente canalizada.
Um relâmpago mais forte, logo seguido pelo ruído do trovão fê-lo dar um salto para trás, com a surpresa, e a escuridão que se fez sentir na casa despertou-o para o momento presente.
A luz fora abaixo.
Podia ter sido só uma avaria do exaustor.
Não, a rua ficara mais escura.
Tentou o interruptor.
Não, não funcionava. A luz fora-se. Era provável que não voltasse tão cedo. Teria sido um cabo partido e não estavam condições de andar gente na rua pendurada em postes.
Era mesmo questão de aguardar que a tempestade amainasse.
Sentou-se no sofá.
Não estava assim tão desarrumado, felizmente, apesar de ter dormido aí mais vezes do que na cama nas últimas semanas.
Estava algo atrás das suas costas, a incomodá-lo. Qualquer coisa de tecido. Puxou e viu que era uma camisola de mulher. Uma camisola de Inverno. Fez as contas de cabeça e pensou que sim, era provável.
O facto de não ter sido contactado por causa da camisola podia ter menos a ver com a estima pela dita ou pela sua necessidade, e mais pelo seu temperamento. Enfim, não se pode agradar a toda a gente e, certamente, a dedicação de João aos seus interesses era maior que que a sua dedicação a pessoas novas, que depressa perdiam a sua novidade e se diluíam no vácuo do dia a dia.
Meteu a camisola de parte, pelo menos podia metê-la a lavar e devolvê-la. Não era um ogre, era apenas distraído com as coisas normais da vida.
A camisola fê-lo lembrar-se que tinha a sua própria mala para preparar.
Combinara com o táxi para as 8 e meia da manhã. Tinha tempo de chegar ao Oriente e beber um café, mesmo que apanhasse trânsito. O seu autocarro era às 10 horas.
Não fazia ideia de quanto tempo ia ficar, mas calculava que umas quatro t-shirts e outras tantas calças de ganga serviam. Mais uma ou duas camisolas, para o caso de ficar fresco. E os calções de banho para o caso de ficar calor. Nunca se consegue adivinhar, nesta altura. Roupa interior, escova e pasta de dentes, um pente, a máquina de barbear, alguma medicação para emergências.
Precisava de cadernos. Levantou-se e abriu um armário da sala, onde coleccionava cadernos vazios. Era sempre prático tê-los em casa.
Olhou para a pilha de livros que coleccionara desde o início do Verão, tentando resistir à tentação de ir buscar um velho e gasto volume do João Aguiar sobre nuvens e crenças pagãs e pessoas que se refugiam em aldeias no Minho.
Aproximou-se com a vela na mão. Sentia-se dentro de uma novela gótica victoriana, uma personagem que olha as estantes à luz da vela enquanto a tempestade desaba atrás dele.
Talvez um policial nórdico fosse uma boa sugestão. Ou talvez não. Quem é que no seu juízo perfeito vai para o meio do nada ler uma história assustadora que tem como cenário o meio do nada? Dadas as circunstâncias, talvez fosse mais prudente levar um livro sobre gatos e ruas cheias de livrarias em Tóquio, escrito por uma autora japonesa. E também este, com um café de gatos.
A pilha moveu-se um pouco. Talvez não caísse.
Colocou os cadernos e os livros em cima da mesa, para levar para o quarto quando fosse fazer a mala.
Teria de ser à luz da vela.
Não tinha de se preocupar com despertador, usava habitualmente o telemóvel para isso, e a essa hora já estava a pé.
Não se podia esquecer do carregador, isso sim.
No silêncio, só se ouviam os ramos e a chuva a fustigar a janela.
Nada de televisões com o volume alto.
Até conseguia ouvir os vizinhos a rir com o filho. Provavelmente, também a jantar à luz das velas. A mãe também lhes oferecera velas no Natal passado…
Já tinha avisado os pais que ia estar uns dias fora.
A mãe tinha ido visitar uns amigos no Sabugal, estava a ajudá-los com a pequena quinta que tinham, estava na altura de apanharem as abóboras e as maçãs, mas ele sabia perfeitamente que era só uma desculpa para se atarefarem na cozinha a fazer doces e biscoitos e a conversar sobre tudo e mais alguma coisa, e depois passarem a conversa para o alpendre com os biscoitos de canela que tinham feito nessa tarde e uma infusão de lúcia lima com as folhas acabadas de apanhar do arbusto.
O que o lembrou das bolachas Ikea, que se apressou a ir buscar ao pote, servindo-se também de mais um pouco da sua infusão, sempre com a vela atrás.
Se calhar podia reler a Abadia de Northanger pelo caminho. Ou A Ilustre Casa de Ramires.
Um novo relâmpago iluminou a rua. Estava tão perto.
Pousou a chávena e o pote das bolachas na mesinha de apoio que tinha ao lado da janela, junto a um confortável cadeirão de leitura.
À primeira vista, a sua sala parecia uma cópia mais actualizada da sala do tio, e a manta de crochet com quadrados coloridos típica da menina Cecília também fazia parte do kit de conforto do seu cadeirão, tal como a mesa e a proximidade da fonte de luz natural e da paisagem.
Abriu a janela, sabia lá ele para quê. Sentiu a força do vento na cara. Nesta ponta da janela não era atingido pela chuva.
Na distância, via o contorno da Serra de Sintra. Adorava a sua vista. Inspirava-o e, muitas vezes, dava-lhe motivação.
Um novo raio cortou os céus.
Magnífico!
A tempestade estava assustadora, porém. Iria deixar muitos estragos.
E a chuva não parecia abrandar, pelo contrário.
Com pouca vontade, achou mais cauteloso fechar os estores.
Iria fazê-lo assim que terminasse a sua bebida quente.
Levou a chávena e as bolachas para a cozinha, fechou os estores de toda a casa, com a vela na mão, pegou nos livros e nos cadernos que deixara em cima da mesa e foi até ao quarto.
Confirmou que a janela estava fechada e baixou estes estores também.
Acendeu mais duas velas - sim, eram imensas -, tirou a mala do armário e abriu-a em cima da cama, começando a colocar a pouca roupa que ainda tinha lavada e arrumada.
Afinal, tinha de levar só dois pares de calças de ganga, e as velhas de fato de treino.
Em cima, colocou um dos livros e um dos cadernos.
Os outros levaria na sua mala a tiracolo, com os documentos e o dinheiro.
Meteu o telemóvel na mesa de cabeceira, e atirou para dentro da mala com o carregador, inútil esta noite, e uma powerbank.
Quase se esquecia do pijama. Meteu um na mala. Havia de encontrar algum sítio onde lavar a roupa.
Fechou a mala, confirmou se tinha tudo na outra mala e deixou junto à porta.
Não havia mais nada a fazer hoje.
A vizinha tinha a chave de reserva, para deixar entrar os pessoas da empresa de limpeza, os papéis estavam arrumados, a loiça estava em modo caos, e parecia que o seu armário tinha explodido em roupa usada para dentro do quarto.
Tinha um dia longo pela frente, amanhã, e uma noite inquieta para hoje.
Iria tentar dormir o que conseguisse, embalado pela tempestade.

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