domingo, 10 de novembro de 2024

No fim da terra.

Novembro é um mês estranho para uma pessoa se meter à estrada.

Ontem, fiz meio Portugal de t-shirt e janelas do carro abertas.

Hoje, atravessei parte da Galiza debaixo de nuvens negras.

No fim da terra, junto ao mar, onde me encontro agora, o vento sopra como se nos quisesse arrancar pelos ares, arremetendo-nos depois contra as arribas como se tivesse prazer nisso (como o compreendo) e os ruídos lá longe, dentro das nuvens, fazem adivinhar a tempestade para breve.

Uma péssima altura para enterrar o corpo físico de uma alma má que teve um breve encontro com alguém que não lhe tolerou as ânsias.

Mas não teria capacidade para isso sozinha, por muita que fosse a vontade.

O meu plano era bem melhor.

Enfim, não é todos os dias que as pessoas com que me cruzo me irritam desta maneira, mas o Tó-Zé Pires, o meu vizinho do rés-do-chão, andava a pedi-las há anos, sim, e o limite foi quando veio à janela torcer alto e bom som pelo Manchester City,  que estava a jogar com uma equipa portuguesa, e chamar o que bem lhe apeteceu aos vizinhos aflitos. 

Também perderam o jogo, e o Tó-Zé ficou ali com o destino marcado.

Estão a ver, um tipo como o Tó-Zé não é difícil de eliminar.

Uma chatice à noite, à porta do café, depois de uma cerveja a mais, uma lâmpada apagada nas escadas para a cave… era fácil demais.

Mas eu queria sentir-lhe o gosto. 

E queria que ele soubesse.

Alguém como o Tó-Zé, que implica com os miúdos da rua, dá pontapés aos cães, atira pedras aos gatos, rosna palavrões entredentes às mulheres, e que se encolhe quando um homem se cruza com ele.

Ah, mas eu sabia. Eu via-o. E ouvia-o.

Não, este tinha de ser tratado mesmo com jeito.

A parte mais fácil era o como.

As plantas certas, transformadas no líquido certo, e infalivelmente mortal.

Algo que pudesse passar por um ataque cardíaco.

O Tó-Zé é estúpido. Bom, era, não é mais.

Se pudesse roubar um bolo do parapeito, roubava.

Observei quieta. Vi-o sentar-se no degrau da sua porta, o olhar a procurar em volta, desesperado, capturado, a embaciar. Acho que me viu. Acho que me viu sorrir, no final.

Em minutos, estava feito, e sem vestígios.

Depois foi só esperar a madrugada e metê-lo no banco traseiro do seu carro. Parecia dormir profundamente, e o cheiro intenso a cerveja dava um bom motivo para isso.

Usei o carro dele para fazer a viagem e os seus cartões para pagar o combustível, tendo o cuidado de usar luvas e de ter o cabelo bem apanhado.

Agora, o Tó-Zé parece dormir uma sesta ali em baixo, no mesmo sítio. O lugar está vazio. Ninguém sai de casa a esta hora, com o tempo assim.

Consigo arrastá-lo pelas rochas, a porta fica aberta com os documentos lá dentro, o rádio e os faróis ligados. Abro um pouco as calças, para parecer que teve de parar para uma emergência fisiológica.

A tempestade que se aproxima é perfeita para o seu desfecho, uma queda de um lugar ermo, até ao mar revolto.

O corpo aparecerá daqui a uns dias, algures numa praia, um pouco amassado.

Ninguém terá dúvidas.

E eu… a caminhada daqui para fora, pelo meio das árvores densas e debaixo da chuva forte não me assusta. Tenho treino para isto e estou preparada. Depois, uma peruca de outra cor, uns óculos e um casaco diferente. Uma viagem incógnita num combóio.

Regresso a casa e sento-me com os meus gatos a ler, como se não tivesse saído de casa no fim de semana.

Como se isto não tivesse acontecido.

Como se nunca o tivesse feito.

Afinal, nunca desconfiam da avózinha simpática de cabelos brancos que trabalha na biblioteca local.




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