Novembro é um mês estranho para uma pessoa se meter à estrada.
Ontem, fiz meio Portugal de t-shirt e janelas do carro abertas.
Hoje, atravessei parte da Galiza debaixo de nuvens negras.
No fim da terra, junto ao mar, onde me encontro agora, o vento sopra como se nos quisesse arrancar pelos ares, arremetendo-nos depois contra as arribas como se tivesse prazer nisso (como o compreendo) e os ruídos lá longe, dentro das nuvens, fazem adivinhar a tempestade para breve.
Uma péssima altura para enterrar o corpo físico de uma alma má que teve um breve encontro com alguém que não lhe tolerou as ânsias.
Mas não teria capacidade para isso sozinha, por muita que fosse a vontade.
O meu plano era bem melhor.
Enfim, não é todos os dias que as pessoas com que me cruzo me irritam desta maneira, mas o Tó-Zé Pires, o meu vizinho do rés-do-chão, andava a pedi-las há anos, sim, e o limite foi quando veio à janela torcer alto e bom som pelo Manchester City, que estava a jogar com uma equipa portuguesa, e chamar o que bem lhe apeteceu aos vizinhos aflitos.
Também perderam o jogo, e o Tó-Zé ficou ali com o destino marcado.
Estão a ver, um tipo como o Tó-Zé não é difícil de eliminar.
Uma chatice à noite, à porta do café, depois de uma cerveja a mais, uma lâmpada apagada nas escadas para a cave… era fácil demais.
Mas eu queria sentir-lhe o gosto.
E queria que ele soubesse.
Alguém como o Tó-Zé, que implica com os miúdos da rua, dá pontapés aos cães, atira pedras aos gatos, rosna palavrões entredentes às mulheres, e que se encolhe quando um homem se cruza com ele.
Ah, mas eu sabia. Eu via-o. E ouvia-o.
Não, este tinha de ser tratado mesmo com jeito.
A parte mais fácil era o como.
As plantas certas, transformadas no líquido certo, e infalivelmente mortal.
Algo que pudesse passar por um ataque cardíaco.
O Tó-Zé é estúpido. Bom, era, não é mais.
Se pudesse roubar um bolo do parapeito, roubava.
Observei quieta. Vi-o sentar-se no degrau da sua porta, o olhar a procurar em volta, desesperado, capturado, a embaciar. Acho que me viu. Acho que me viu sorrir, no final.
Em minutos, estava feito, e sem vestígios.
Depois foi só esperar a madrugada e metê-lo no banco traseiro do seu carro. Parecia dormir profundamente, e o cheiro intenso a cerveja dava um bom motivo para isso.
Usei o carro dele para fazer a viagem e os seus cartões para pagar o combustível, tendo o cuidado de usar luvas e de ter o cabelo bem apanhado.
Agora, o Tó-Zé parece dormir uma sesta ali em baixo, no mesmo sítio. O lugar está vazio. Ninguém sai de casa a esta hora, com o tempo assim.
Consigo arrastá-lo pelas rochas, a porta fica aberta com os documentos lá dentro, o rádio e os faróis ligados. Abro um pouco as calças, para parecer que teve de parar para uma emergência fisiológica.
A tempestade que se aproxima é perfeita para o seu desfecho, uma queda de um lugar ermo, até ao mar revolto.
O corpo aparecerá daqui a uns dias, algures numa praia, um pouco amassado.
Ninguém terá dúvidas.
E eu… a caminhada daqui para fora, pelo meio das árvores densas e debaixo da chuva forte não me assusta. Tenho treino para isto e estou preparada. Depois, uma peruca de outra cor, uns óculos e um casaco diferente. Uma viagem incógnita num combóio.
Regresso a casa e sento-me com os meus gatos a ler, como se não tivesse saído de casa no fim de semana.
Como se isto não tivesse acontecido.
Como se nunca o tivesse feito.
Afinal, nunca desconfiam da avózinha simpática de cabelos brancos que trabalha na biblioteca local.
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