terça-feira, 29 de outubro de 2024

Dia de Todos os Santos.

Sinto o gosto do sangue nos lábios. 

Perdi os sentidos, sinto a cabeça a latejar, um golpe aberto na testa.

Decido que é a última vez que Vicente me toca.

Que me toca desta maneira.

Não tenho forma de me defender, eu sei.

Uma mulher nunca se pode virar ao marido, ao pai, ao irmão, a qualquer homem.

Mas uma vez é sempre a última.

Uma vez é a que nos faz perder a capacidade de aceitar que a vida é assim e que se nos submetermos teremos a Vida Eterna, mesmo que a vida terrena tenha sido um Inferno.

Mas o Inferno não será pior que isto, e escolho o Inferno a esta vida.

Desço o caminho até junto das árvores.

O sol ainda mal se levantou.

Aqui quase se sente o silêncio.

As plantas estão silenciosas.

Algumas apenas belas.

Algumas insignificantes, parecem despojadas da atenção de Deus.

Outras… poderosamente mortíferas.

Terão sido estas também concebidas no seio de Deus?

E é tão fácil confundi-las com as ervas úteis.

Será um truque do Demónio?

Ou terá Deus um pouco de Demónio dentro dele?

Quem sabe, são a caridade de Deus para as mulheres desesperadas.

Não preciso de muito.

Podia usá-las para mim, e acabar com tudo.

Mas não tenho coragem para isso.

Quero tanto viver!

Mas sei que quero trocar a minha Vida Eterna por um pouco de paz na Terra.

Hoje será o dia da minha liberdade.

Hoje, no Dia de Todos os Santos, quando todos estiverem dentro das igrejas a mostrar como são dignos das suas bençãos quando, na verdade, as suas acções mostram que são servos do Demónio.

Hoje, todos se mostram santos para o seu deus.

Mas esquecem que ele vê as suas almas.

Esquecem que Deus castiga quando quer e como quer.

Mesmo os santos.

Mesmo neste dia em que os seus escravos lhe enchem os templos de súplicas e lamentos e rezas e mentiras.


Sinto o gosto do sangue dos lábios. Perdi os sentidos, mas não estou ferida, é apenas um corte. Terá sido o choque que me terá levado a falhar, mas vejo tudo em meu redor destruído.

Não resta uma parede do mísero casebre onde vivia.

Não sobra nem uma peça que se possa aproveitar da miséria que aqui estava dentro.

Olho à minha volta, ainda a tactear: sinto os braços, sinto as pernas, sinto dor apenas na face.

Oiço chamas a crepitar.

De onde vêm? Não as consigo ver, mas já as posso cheirar.

Madeira e roupa e tristeza e desgraça e carne.

Os gritos crescem de intensidade.

Ouço-os agora mais perto.

Consigo levantar-me, mas já não sinto a tigela que trazia na mão.

Onde levava o veneno que ia acabar com a minha miséria.

Ou talvez não.

Talvez me desse apenas um descanso da miséria, ou uma miséria mais leve.

Carregar o peso do pecado seria uma nova miséria.

Vejo-a finalmente no chão, a meus pés, o barro em mil pedaços, o líquido espalhado pelas traves de madeira, o seu poder inútil agora.

O chão ainda treme, as paredes ainda mexem.

Sinto que ainda não foi tudo.

O peso na alma diz-me que o pior está para vir.

Os olhos habituam-se ao lugar onde estou.

Vejo debaixo de pedras a mão de Vicente.

Inanimada.

Ainda escorre sangue pelo que resta do seu braço, do seu corpo.

Mesmo que estivesse vivo, não o conseguiria retirar de lá.

Mesmo que estivesse vivo, não quereria fazê-lo.

Penso se Deus o terá castigado, para me livrar a mim de ter de o fazer.

Penso se terei sido eu a provocar isto tudo com a intensidade do meu ódio por Vicente.

Creio que terá sido isso.

E sei que o pior virá, porque o ódio que sinto não passou ainda.

Mesmo depois do meu ódio ter feito com que as paredes lhe caíssem em cima, algo cá dentro deseja que queime tudo em seu redor.

Uma chama intensa, destruidora, que limpe a terra da sua presença, que faça esquecer que este homem existiu.

E, se isso não bastar, que venha uma onda e que leve tudo para o abismo.

No lugar onde estava a janela, um gato preto chama a minha atenção.

Provavelmente, desesperado e assustado como eu.

Mas ele sabe o caminho daqui para fora.

Para a rua, para a liberdade.

Para a fuga.

Passo por cima dos escombros, sigo o gato, seguro do seu caminho.

Por todo o lado vejo o mesmo.

Gritos, partes de corpos debaixo de traves e de entulho.

O cheiro a carnes queimadas.

O calor que se aproxima.

Será isto o Inferno?

Será que, afinal, morri?

Mas não, sinto-me mais viva do que nunca.

Um corvo grasna por cima de nós, voa na direcção do castelo.

É longe, mas acho que consigo.

O gato segue também pelo que resta da rua.

Os animais sabem melhor do que os Homens.

Corro na direcção contrária das pessoas, para longe do que resta da cidade.

Ali, nada me prende.

A cada passo, sinto-me mais leve, vejo mais longe, mais nitidamente, mas sinto os sons distantes.

Só oiço o vento nas árvores e o rio a protestar.

Cá em cima, longe das trevas, vejo o fogo a percorrer o que antes era vida e movimento.

Que luz tão brilhante.

Que luz tão intensa.

Que luz tão arrasadora.

Um vento forte faz-me desequilibrar, e lá em baixo a água movimenta-se, como uma parede enorme que irá tragar o que sobrar das chamas.

Tentei escapar do Inferno, mas creio que o meu desejo de morte o trouxe até mim.

Sinto agora culpa, e alívio, e desespero, e o poder de um deus.

Olhai, Senhor o meu pecado.

Olhai, Senhor, o meu castigo.




Semana já não sei quantas, não me perguntem, não sei de nada, não sei a quantas ando.


segunda-feira, 14 de outubro de 2024

A Voz no círculo na Floresta

Aqui, neste lugar onde me encontro, já seis mil anos se passaram sob os meus pés.

As águas do lago mantêm-se calmas, não denunciando que são eternidade.

As pedras brilharam ao sol, choraram à chuva, foram marcadas, algumas cobriram-se de musgo, e envelheceram.

As bolotas tornaram-se troncos frágeis, depois carvalhos vigorosos, enfrentaram o calor e as neves, morreram, uns mais cedo do que outros, e voltaram a nascer e a crescer.

A lua cresce, e diminui, e volta a crescer. O seu domínio é o meu. O meu domínio é o seu.

Aqui me mantenho, quase imutável, cada vez mais poderosa, desde o dia em que, enganada pelo poder da criatura que aqui vivia anteriormente, caí na sua armadilha e fiquei presa. Nada que me incomode muito. Gosto de estar aqui, do silêncio, da paisagem, de sentir que sou eu quem controla quase tudo em meu redor.

De vez em quando, passa por aqui um cavaleiro perdido. São tão fáceis de dominar e de fazer cair no lago, pela encosta das pedras que fica a coberto das nuvens e da vegetação. Gosto de ver o desespero do inevitável a espelhar-se na sua face quando percebem o momento em que à sua frente nada mais têm do que o infinito e a morte certa.

Algumas vezes, passam viajantes. Os seus cavalos apercebem-se de algo, afilam as orelhas e aceleram o passo, mas não me mostro e, para eles, os mortais, sou mais uma pedra alta na paisagem agreste.

Uma vez só, passou uma igual a mim.

Como fui há muito tempo.

Nunca tinha visto nenhuma dos deles aqui.

Este lugar é agora muito dentro da floresta para desejarem vir passear.

No entanto, algo a fez voltar. Não uma ou duas vezes, mas muitas, durante anos. Consegui acompanhar as suas transformações físicas. Cabelos claros que escureceram e alongaram, a figura a a ganhar forma, os gestos a suavizarem. Os mesmos olhos verdes a espreitarem sem revelar segredos.

Uma novidade interessante para mim, que durou muito pouco do meu tempo, porém.

Para mim, medir em anos é um inspirar e um expirar suaves, quando tenho toda a eternidade atrás de mim e à minha frente.

Algo a atraía, mas ela nunca soube o que eu era, e eu nunca me mostrei.

A mortal era fraca e indigna, não iria aguentar olhar o meu poder.

Ou talvez eu tivesse inveja da liberdade que tinha em conseguir sair deste lugar, em voltar para a civilização, do outro lado da colina, para o movimento e as casas e o mercado e os risos.

Na última vez que veio, um cavaleiro acompanhava-a.

Mantive-me mais quieta ainda, a observá-los atentamente. Nunca tinha visto mortais a interagir entre si, neste lugar. Os que passavam, vinham sozinhos, se falavam era com os animais que os acompanhavam.

Fiquei curiosa, e não me decepcionei. Eram mais interessantes do que os outros.

Julgando-se completamente a sós, sentiam-se mais livres, e vi-os a saltar nas pedras, a rir às gargalhadas, a tirar os sapatos e a brincar no lago.

Mas algo aconteceu que fez mudar o ambiente. Não sei se um olhar dele sob um raio do sol, ou se um levantar da saia dela um pouco mais acima da canela, até eu senti a estranha mudança no ar, no vento, na temperatura exterior.

Ele era um ser tão lindo, tão luminoso, olhos claros, de um azul que fazia imaginar destinos irreais, e um sorriso escondido, tímido, atrás de uma expressão sóbria. Mais bonito do que os outros que passaram antes, que mal tinham tocado a minha curiosidade, e com algo dentro dele que era denso e sombrio, que eu mal conseguia identificar mas, não tinha dúvidas, estava lá.. Nenhum dos outros me causara as sensações que corriam agora dentro de mim, nenhum dos outros me fizera voltar o olhar e espreitar com mais atenção.

Segundos depois, extinguiram-se os sorrisos e os olhares eram fixos e sérios, como se só eles existissem no mundo nesse momento, eclipsando as pedras, as árvores, o lago, até eu, aqui, sólida e imponente, apesar de invisível aos seus sentidos, e abraçaram-se como se se quisessem fundir, beijando-se com intensidade.

Nunca tinha visto algo assim, nem quando eu própria era mortal.

O que se seguiu, o arrancar apressado das roupas, os gemidos ofegantes, os movimentos animalescos, acordaram algo em mim que não sabia sequer que existia. Algo monstruoso. Mais monstruoso ainda, quero eu dizer.

Algo que queria ficar.

Algo que me fazia querer libertar de onde estava.

A sequência de movimentos repetiu-se, uma, duas, várias vezes, até a respiração denunciar o cansaço, até quase o sol se pôr na colina.

Vi-os arrumar as coisas espalhadas e prepararem-se para partir.

Senti que a odiava com todas as minhas forças, que a queria ter só para mim, mas que lhe queria fazer mal também.

Então, tive uma ideia. Não podia não voltar a sentir este vibrar que eles me causaram e, mesmo sem conseguir chegar a ela, ele era tão fácil de dominar…

Ordenei ao vento que mexesse as folhas num ramo, que lhe soltasse uma madeixa do cabelo, que era longo e da cor da palha nos campos, o que fez o fez olhar na minha direcção. Foi tão fácil.

“Aylmer…”, chamei.

“Aylmer…”. Dei a minha ordem à sua mente. O seu sorriso confirmou-o. Era meu. Estava feito.

Era esse o seu destino, agora.

Era essa a sua missão, incumbido pelo seu anjo, a sua musa, a sua inspiração.

“Callia.”

O meu nome escapou dos seus lábios, ou teria sido o vento?

Fraco! Fraco! Como todos os mortais.

…………

A lua erguia-se na colina embora o sol ainda não se estivesse escondido completamente.

Aylmer olhou as mãos. Estavam manchadas de sangue e seguravam ainda o seu punhal, exemplarmente bem cuidado, como era seu dever de cavaleiro.

A estranha pedra que vira no círculo  no centro da floresta, junto ao lago, ecoava na sua mente como se fosse a mulher mais bela que havia visto, e a sua ordem ainda latejava nos seus ouvidos.

Fora tão fácil obedecê-la.

Será que era o desejo dela, ou o seu, que comandara as suas mãos a trespassar com o seu punhal o coração de Brea? 

Ainda sentia cravado nele o seu olhar acusador quando ela compreendera a traição e vira a revelação das suas intenções.

Respirou fundo, mas não se sentia neste lugar. Nem era prudente que ficasse.

Estava feito. Não havia nada para ele aqui, agora.

Aylmer avançou na direcção da floresta.

……

Callia viu Aylmer olhar o céu, mesmo não estando no alcance do seu horizonte.

Sabia que iria achar estranho o modo como nenhuma estrela se mostrava. Apesar disso, a Lua brilhava intensa, e iluminava tudo em redor. Não teria dificuldade em ver o caminho, em chegar a ela. Chamou-o com a mente. Era tão fácil fazê-lo obedecer aos seus pedidos.

A floresta densa erguia-se perante ele, mas não lhe foi difícil vislumbrar a pequena abertura para o discreto caminho que a atravessava de uma ponta à outra, contorcendo-se no interior por entre as árvores centenárias e os rochedos cobertos de símbolos desde tempos imemoráveis, arbustos transformados em árvores, troncos entrelaçados entre si, uma interminável hera a acorrentá-los de alto a baixo, pequenos ribeiros e cascatas em lugares surpreendentes, escondidas e prontas a saciar a sede a viajantes desorientados, por qualquer dos lados que se conseguisse entrar, um labirinto interminável, até seguindo pelo quase invisível carreiro até ao ponto mais secreto, ao lugar de maior poder, no seu centro, junto ao lago do fundo dos tempos e do círculo de pedras que já ali estava desde antes dos homens que correm agora a Terra.

As árvores pareciam sussurrar o seu nome, o de Brea, o de Callia, o seu crime.

Às vezes, pareciam gritá-lo. Apressou o passo e continuou a ouvi-lo. Parou, e ele continuava. Talvez agora fosse assim. Ou talvez fosse do lugar. Uma parte de si sentia-se atraída, mas algo lhe rosnava que era maligno e que seria castigado, que merecia ser castigado.

Aylmer estava de regresso ao local onde a encontrara a primeira vez, junto ao lago escuro e assustadoramente tranquilo, junto ao círculo de pedras com símbolos que não conhecia, debaixo de um emaranhado de ramos densos e intemporais, sob a luz intensa da lua cheia.

Parecia que se tinham passado séculos desde o dia de ontem, em que ali estivera com Brea.

Aproximou-se da mulher que parecia uma deusa, ou uma pedra entre as que ali estavam, ou a própria lua.

Parecia-lhe tão alta, mas não sabia que era o efeito causado pelo brilho da lua e pela ausência de som, excepto o que vibrava dentro de si. Os seus olhos fixavam-no como se quisessem prendê-lo, e comseguiram-no, olhos tão escuros, tão fundos, tão imperiosos, que a sua respiração se suspendeu. Sorria como se tivesse alcançado o que desejava, um sorriso de conquista, de vitória não se consegue esconder, e Aylmer não sabia se queria fazer parte dessa conquista ou se devia ter medo dela, porque ao olhá-la sentiu-se gelar.

As vozes na sua cabeça calaram-se, como sucedera antes com os sussurros da floresta. O silêncio era palpável.

Ajoelhou-se aos seus pés e baixou a cabeça, subjugado pela aura de poder que dela emanava. 

Como podia ser tão bela?

Sentiu medo e luxúria e ódio ao mesmo tempo.

Eram dele estes sentimentos, ou eram dela?

Como lhe podia controlar os pensamentos e instruí-lo a pegar no punhal que trazia à cintura?

Lentamente, mas decidido, subiu o punhal acima da sua cabeça, olhando-o.

Reflectia a luz da lua, que passava pela abertura das árvores altas.

Reflectia o olhar escuro de Callia, onde se reflectia a luz da lua.

Como podia não obedecer à sua ordem?

Lentamente, olhos de novo os céus, fechou os olhos e inspirou fundo.

Sentiu o coração a acelerar e depois a acalmar.

Finalmente, compreendera.

Uma lágrima escapou, rebelde.

Num golpe experiente, baixou o punhal ao lugar no seu pescoço onde sabia que a morte viria mais rápida.

Ainda levantou o olhar a Callia, a sua deusa, o seu carrasco, e conseguiu compreender o seu sorriso triunfante.

Não passara de um peão nas suas mãos.

O sacrifício fora, finalmente, consumado.

……

Callia sorria, mexendo lentamente os membros, que sentia como novos.

Sim, fora mortal e fora enganada. Ficara tempo demais transformada em pedra e agora queria viver.

Aylmer fora perfeito para o seu desejo, e agora ficaria no lugar dela, uma pedra para a eternidade, e ela era… livre!

Mas… livre para quê, afinal?…




O castelo na penumbra

Sintra, Novembro de 1827. O vulto do jovem homem de cabelo loiro passou de novo, rapidamente. Desta vez, quase o conseguiu ver pelo canto do...