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O Crime na noite de Solstício de Verão - Capítulo 3.

Afinal, não tinha sido a cobra, como diziam por todo o lado na aldeia, reflectiu em voz alta o Inspector Sebastião Lobo, olhando sem ver o pato de borracha que mantinha no cimo do ecrã do seu computador e que o devia ajudar a concentrar-se em momentos de crise.
Muitas vezes, o pato ignorava-o, mas hoje dizia-lhe com o olhar que não, ele não tinha razão, o caso não era assim tão simples, e ele estava a querer resolvê-lo sem querer resolver tudo o que estava pendente.
Espera, não é o pato, Sebastião! Essas coisas não existem. Como não existem velhas que andam pela aldeia a revelar aos sete ventos informações no segredo da polícia judiciária, que é como quem diz, numa voz rouca e sinistra, meio sibilada. Como é que o raio da velha consegue saber estas coisas? Não sei. Mais um mistério para o infalível Inspector Lobo, conhecido na área pelo seu faro e profissionalismo impecáveis!
O que existe é pesquisa, investigação e coordenação dos factos, e isso era o que ele ia fazer.
O relógio do fundo da sala indicava que era a hora oficial de saída, e era essa a deixa de que o Inspector precisava.
Não para ir para casa beber uma Sagres de litro pela garrafa enquanto disfrutava de um charuto cubano - sim, chegado às suas mãos de forma ilegal - e de um relaxante banho de imersão com bolhinhas azuis, alfazema e sais do Mar Morto - também chegados às suas mãos de forma ilegal. Não para ir para o bar do Tópê aviar shots de absinto e de b52’s enquanto observava atentamente o ambiente e se entretinha a espiolhar a vida dos clientes somente através da observação e interpretação dos dados.
Não para ir até ao Mucha, o café-livraria, escutar ao longe as conversas acerca de ervas, poesia e arte das suas proprietárias Beta, Guida e Mila, enquanto amassava o lombo do gato Raven e colocava os pensamentos em dia com o arengar sem nexo do Sr. Vitorino, que conseguia fazer, no entanto, com que tudo encaixasse.
O que realmente fazia alinhar os pontos perdidos na sua cabeça eram as duas horas de corrida que fazia, religiosamente, todos os dias, uma hora de manhã, antes de um banho de água fria, como quando estava nos serviços da elite secreta da Força Aérea, e outra à tarde, depois do horário de expediente, momento esse que fazia realmente render o que pesquisara durante o dia.
Hoje preparava-se para ter resultados no final dessa hora, o que queria dizer ter o caso, de uma simplicidade surpreendente, resolvido! 
Equipou-se com a sua t-shirt justa e os seus calções diminutos ali mesmo no seu cubículo e saiu para a estrada nacional, pronto para regressar com este caso resolvido.
Ponto 1: Não tinha sido a cobra. Não, não é assim que vou colocar no relatório. A senhora dona Ana Conda, perdão, Conde, não tinha nada a ver com esta história, a não ser o estar a viver em união de facto com a vítima. E o ter ido à casa dele na manhã seguinte ao incidente, do qual ela não tinha conhecimento, é claro, com dois senhores musculados, buscar alguns dos seus pertences, seus dela, e alguns da vítima. Perfeitamente lógico. Na hora do crime estaria, com estes mesmos dois senhores, suas testemunhas, no único cinema da cidade a ver o Goldeneye, que era o que estava realmente em cartaz, apesar de não terem mais nenhuma testemunha, e de nem a senhora nem os seus amigos terem guardado os bilhetes.
Aguardavam as perícias aos lixos da zona, mas era um pormenor difícil de se provar.
Ponto 2: Independentemente de a senhora ou de qualquer outra pessoa estar envolvida ou não, o facto era que o Dr. Melo se encontrava num local fora do seu habitual, a hora também fora do seu habitual, pois às sextas-feiras, a noite da ocorrência, o Dr. Melo tinha o hábito enraizado de jantar a pouco saudável opção de duas bifanas no pão, bem aviadas de mostarda, e respectivas minis Super Bock a acompanhar, no bar do Tópê, que foi precisamente quem deu o alerta, por notar a falta do seu habitué; isso e uns miúdos quaisquer a descer a colina a correr e aos gritos, mais para o lado da meia-noite, não se podia esquecer de apontar esses como suspeitos, meliantes juvenis, todos eles, muito provavelmente. Ou testemunhas essenciais. Também valia a pena apontar essa hipótese.
Ponto 3: O Tópê anda a arrastar a asa à Beta do Mucha, e ela anda também embeiçada por ele, só eles dois é que não vêm, porque o Inspector Lobo, com os seus apurados super-instintos, já juntou os pontos e esclareceu este mistério. Só faltam os envolvidos dar-se conta disso, mas talvez se possa criar uma situação para que isso aconteça, com a ajuda do Sr. Vitorino, com quem o Inspector partilha cálicezinhos de ginginha e biscoitos de aveia aos Sábados ao anoitecer no dito Mucha, uma vez que já não são rapazes dados à noitada. E o filho dos Ingleses está completamente fascinado pela Mila e não vem cá só pelo bolo de morangos com chantilly. Só eu é que vejo, enfim...
Ponto 2 outra vez, o 3 foi porque passei ao pé de uma janela com um gato preto a espiolhar a rua, muito semelhante ao do Mucha. O Dr. Melo estava em local e hora não habitual na sua rotina, tinha uma pequena bala alojada no abdómen, não mortífera, desde sexta-feira, hora provável 23 ou meia-noite, e foi encontrado na manhã seguinte a boiar, preso a uma rocha e junto à falésia da Porta do Moínho.
Foram encontrados vestígios desta ocorrência no local indicado, bem como dos jovens meliantes, vão ter muito que explicar, os pequenos criminosos!, e um pedaço de unha vermelho ainda sem data e sem dono.
Poderá ser acidente, suicídio ou, enfim, homicídio.
No entanto, a hipótese de acidente será pouco provável, pois o que aconteceu não estava dentro dos hábitos da vítima, não ocorreu dentro do percurso que ele habitualmente fazia, ou seja, teve de sair do que era o seu típico, pelo que o Inspector colocou essa opção de lado.
A hipótese de suicídio não tinha qualquer outra evidência a fortalecê-la, como uma carta escrita por si, ou uma situação de depressão continuada, ou dívidas súbitas.
Já o homicídio, precisava de suspeitos, pessoas com o meio, o motivo e a oportunidade, e aí já havia mais matéria para cogitações.
Mesmo que não tivesse sido a forma de executar o crime, havia já a confirmação de que existira uma arma. Mas onde? Se o Dr. Melo se tivesse atingido a si próprio, a arma estaria no cimo da falésia. Ou poderia ter caído com ele? Era necessário aguardar algum resultado das buscas.
E porque foi ele para aquele lugar e àquelas horas? Foi por vontade própria? Viu alguma coisa que lhe despertou a curiosidade e testemunhou o que não devia, sendo castigado por isso? Tinha um encontro combinado ali? Se assim fosse, como, e com quem?
Era neste ponto em que o Inspector se encontrava quando, no final da sua hora de corrida na beira da estrada, desceu até à rua principal dos Casais de Santa Helena para rematar com um chá gelado caseiro e, quem sabe, um quadrado de brownie ou uma fatia da tarte de maçã na Mila, no Mucha.
Quis o destino, porém que, assim que aí entrasse, trocasse olhares com o Sr. Vitorino, e percebesse que o cérebro de ambos estava na mesma frequência, o homem da lei e o homem social: já que não se conseguia ainda saber a verdade, haveria então motivo para alguém limpar o sebo ao Dr. Melo? E, se sim, quem e porquê?
A expressão séria do Sr. Vitorino deu ao faro do Inspector Sebastião Lobo uma certeza: ele e o Sr. Vitorino seriam parceiros na busca e partilha de tudo o que pudesse levar à descoberta do que realmente acontecera naquela noite!



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