segunda-feira, 15 de julho de 2019

O Crime na noite de Solstício de Verão - Capítulo 3.

Afinal, não tinha sido a cobra, como diziam por todo o lado na aldeia, reflectiu em voz alta o Inspector Sebastião Lobo, olhando sem ver o pato de borracha que mantinha no cimo do ecrã do seu computador e que o devia ajudar a concentrar-se em momentos de crise.
Muitas vezes, o pato ignorava-o, mas hoje dizia-lhe com o olhar que não, ele não tinha razão, o caso não era assim tão simples, e ele estava a querer resolvê-lo sem querer resolver tudo o que estava pendente.
Espera, não é o pato, Sebastião! Essas coisas não existem. Como não existem velhas que andam pela aldeia a revelar aos sete ventos informações no segredo da polícia judiciária, que é como quem diz, numa voz rouca e sinistra, meio sibilada. Como é que o raio da velha consegue saber estas coisas? Não sei. Mais um mistério para o infalível Inspector Lobo, conhecido na área pelo seu faro e profissionalismo impecáveis!
O que existe é pesquisa, investigação e coordenação dos factos, e isso era o que ele ia fazer.
O relógio do fundo da sala indicava que era a hora oficial de saída, e era essa a deixa de que o Inspector precisava.
Não para ir para casa beber uma Sagres de litro pela garrafa enquanto disfrutava de um charuto cubano - sim, chegado às suas mãos de forma ilegal - e de um relaxante banho de imersão com bolhinhas azuis, alfazema e sais do Mar Morto - também chegados às suas mãos de forma ilegal. Não para ir para o bar do Tópê aviar shots de absinto e de b52’s enquanto observava atentamente o ambiente e se entretinha a espiolhar a vida dos clientes somente através da observação e interpretação dos dados.
Não para ir até ao Mucha, o café-livraria, escutar ao longe as conversas acerca de ervas, poesia e arte das suas proprietárias Beta, Guida e Mila, enquanto amassava o lombo do gato Raven e colocava os pensamentos em dia com o arengar sem nexo do Sr. Vitorino, que conseguia fazer, no entanto, com que tudo encaixasse.
O que realmente fazia alinhar os pontos perdidos na sua cabeça eram as duas horas de corrida que fazia, religiosamente, todos os dias, uma hora de manhã, antes de um banho de água fria, como quando estava nos serviços da elite secreta da Força Aérea, e outra à tarde, depois do horário de expediente, momento esse que fazia realmente render o que pesquisara durante o dia.
Hoje preparava-se para ter resultados no final dessa hora, o que queria dizer ter o caso, de uma simplicidade surpreendente, resolvido! 
Equipou-se com a sua t-shirt justa e os seus calções diminutos ali mesmo no seu cubículo e saiu para a estrada nacional, pronto para regressar com este caso resolvido.
Ponto 1: Não tinha sido a cobra. Não, não é assim que vou colocar no relatório. A senhora dona Ana Conda, perdão, Conde, não tinha nada a ver com esta história, a não ser o estar a viver em união de facto com a vítima. E o ter ido à casa dele na manhã seguinte ao incidente, do qual ela não tinha conhecimento, é claro, com dois senhores musculados, buscar alguns dos seus pertences, seus dela, e alguns da vítima. Perfeitamente lógico. Na hora do crime estaria, com estes mesmos dois senhores, suas testemunhas, no único cinema da cidade a ver o Goldeneye, que era o que estava realmente em cartaz, apesar de não terem mais nenhuma testemunha, e de nem a senhora nem os seus amigos terem guardado os bilhetes.
Aguardavam as perícias aos lixos da zona, mas era um pormenor difícil de se provar.
Ponto 2: Independentemente de a senhora ou de qualquer outra pessoa estar envolvida ou não, o facto era que o Dr. Melo se encontrava num local fora do seu habitual, a hora também fora do seu habitual, pois às sextas-feiras, a noite da ocorrência, o Dr. Melo tinha o hábito enraizado de jantar a pouco saudável opção de duas bifanas no pão, bem aviadas de mostarda, e respectivas minis Super Bock a acompanhar, no bar do Tópê, que foi precisamente quem deu o alerta, por notar a falta do seu habitué; isso e uns miúdos quaisquer a descer a colina a correr e aos gritos, mais para o lado da meia-noite, não se podia esquecer de apontar esses como suspeitos, meliantes juvenis, todos eles, muito provavelmente. Ou testemunhas essenciais. Também valia a pena apontar essa hipótese.
Ponto 3: O Tópê anda a arrastar a asa à Beta do Mucha, e ela anda também embeiçada por ele, só eles dois é que não vêm, porque o Inspector Lobo, com os seus apurados super-instintos, já juntou os pontos e esclareceu este mistério. Só faltam os envolvidos dar-se conta disso, mas talvez se possa criar uma situação para que isso aconteça, com a ajuda do Sr. Vitorino, com quem o Inspector partilha cálicezinhos de ginginha e biscoitos de aveia aos Sábados ao anoitecer no dito Mucha, uma vez que já não são rapazes dados à noitada. E o filho dos Ingleses está completamente fascinado pela Mila e não vem cá só pelo bolo de morangos com chantilly. Só eu é que vejo, enfim...
Ponto 2 outra vez, o 3 foi porque passei ao pé de uma janela com um gato preto a espiolhar a rua, muito semelhante ao do Mucha. O Dr. Melo estava em local e hora não habitual na sua rotina, tinha uma pequena bala alojada no abdómen, não mortífera, desde sexta-feira, hora provável 23 ou meia-noite, e foi encontrado na manhã seguinte a boiar, preso a uma rocha e junto à falésia da Porta do Moínho.
Foram encontrados vestígios desta ocorrência no local indicado, bem como dos jovens meliantes, vão ter muito que explicar, os pequenos criminosos!, e um pedaço de unha vermelho ainda sem data e sem dono.
Poderá ser acidente, suicídio ou, enfim, homicídio.
No entanto, a hipótese de acidente será pouco provável, pois o que aconteceu não estava dentro dos hábitos da vítima, não ocorreu dentro do percurso que ele habitualmente fazia, ou seja, teve de sair do que era o seu típico, pelo que o Inspector colocou essa opção de lado.
A hipótese de suicídio não tinha qualquer outra evidência a fortalecê-la, como uma carta escrita por si, ou uma situação de depressão continuada, ou dívidas súbitas.
Já o homicídio, precisava de suspeitos, pessoas com o meio, o motivo e a oportunidade, e aí já havia mais matéria para cogitações.
Mesmo que não tivesse sido a forma de executar o crime, havia já a confirmação de que existira uma arma. Mas onde? Se o Dr. Melo se tivesse atingido a si próprio, a arma estaria no cimo da falésia. Ou poderia ter caído com ele? Era necessário aguardar algum resultado das buscas.
E porque foi ele para aquele lugar e àquelas horas? Foi por vontade própria? Viu alguma coisa que lhe despertou a curiosidade e testemunhou o que não devia, sendo castigado por isso? Tinha um encontro combinado ali? Se assim fosse, como, e com quem?
Era neste ponto em que o Inspector se encontrava quando, no final da sua hora de corrida na beira da estrada, desceu até à rua principal dos Casais de Santa Helena para rematar com um chá gelado caseiro e, quem sabe, um quadrado de brownie ou uma fatia da tarte de maçã na Mila, no Mucha.
Quis o destino, porém que, assim que aí entrasse, trocasse olhares com o Sr. Vitorino, e percebesse que o cérebro de ambos estava na mesma frequência, o homem da lei e o homem social: já que não se conseguia ainda saber a verdade, haveria então motivo para alguém limpar o sebo ao Dr. Melo? E, se sim, quem e porquê?
A expressão séria do Sr. Vitorino deu ao faro do Inspector Sebastião Lobo uma certeza: ele e o Sr. Vitorino seriam parceiros na busca e partilha de tudo o que pudesse levar à descoberta do que realmente acontecera naquela noite!



sexta-feira, 5 de julho de 2019

O Crime na noite de Solstício de Verão - Capítulo 2.

A Santa tudo sabia, tudo adivinhava. Era a crença mais vincada do povo dos Casais a que a Santa dera o nome, há 500 anos atrás, quando um frade atrevido que andava a tentar espreitar os seios das sereias atrás das rochas, na ilha, a encontrara num nicho meio enterrado na areia, na maré baixa. Frei Tomé esqueceu as sereias, e nunca descobriu que eram mulheres verdadeiras e não sereias, de tão cativado ficou da figura que encontrou, uma estatueta pequena e descorada, com lapas agarradas ao manto azul, mais duas na bochecha, e outra no nariz, não pela beleza da imagem, mas precisamente por constatar que era a Santa mais feia que alguma vez vira, Deus nosso senhor o perdoasse!, com o ar mais enfadado que era possível dar a uma senhora, ainda mais Santa, a criatura que a fizera devia estar nesse momento a arder nas fornalhas do Inferno, ou inspirara-se na imagem da mãe de Frei Tomé, que realmente conseguia apreceber-se das semelhanças.
Agachando-se na rocha e esgravatando com as mãos, conseguiu retirar a imagem com alguma facilidade, recordando subitamente os manuscritos que lera no Convento acerca de uma Santa Helena, que se perdera no mar com a subida da maré, com o desgosto das obras dos Homens e que, de acordo com a lenda, as águas baixariam e a Santa voltaria para os abençoar quando os achasse merecedores disso, manifestando a vontande de que se deveria erigir uma pequena capela nesse lugar, em sua homenagem.
Frei Tomé estava atordoado com toda a iluminação com que fora tocado nessa noite e, ganhando forças sobrenaturais, levantou a Santa aos céus, rezando uma prece inspirada pelo momento, que terá afastado as sereias pagãs para todo o sempre, porque se tornaram lenda e nunca mais delas se ouviu falar naquela praia!
Ignorando as explicações lógicas para o que andava um frade a fazer a altas horas da noite atrás das rochas da praia, na pequena ilha que já nesses dias tinha o nome de Ninho das Gaivotas, na maré baixa, que era a única forma de lá se chegar na época, e acreditado na inspiração das visões dos santos e dos anjos, entretanto um pouco mais enfeitadas pelo entusiamado frade, figura habitualmente sossegada, que se entretinha no Convento, essencialmente, com cálculos de subidas e descidas de marés e teorias de que ou a ilha se estava a levantar ou o nível das águas estava a baixar, o que fazia com que tivesse mais por companhia os seus cadernos e menos os seus companheiros, as gentes das casas à beira-mar alegraram-se com a chegada de Santa e logo ali erigiram a primeira pedra da capela e se nomearam habitantes dos Casais de Santa Helena, pasmados, como Frei Tomé, com o ar amuado da imagem bendita.
Com o tempo, a capela foi construída para abrigar a Santa, os altares enfeitaram-se de flores simples oferecidas com sinceridade por almas humildes, e um agricultor agradeceu à Santa as boas colheitas e os filhos saudáveis com a oferta de um sino, que é o que ainda hoje toca na aldeia, enquanto os descendentes do lavrador a continuam a povoar a terra aqui e ali, sempre saudáveis, se calhar não tanto por influência da Santa, mas por não terem o hábito de casar com primos direitos.
O pequeno nicho onde foi encontrada, na beira da ilha, foi enfeitado de seixos e de conchas, e é onde ainda hoje se deixam os agradecimentos mais íntimos e sinceros, apesar de conter apenas velas e flores simples.
A praia ganhou o seu nome, embora essa referência venha apenas nos guias turísticos e na lista telefónica, porque para os locais e conhecedores ganhou a carinhosa designação de “Praia da Amuada”, em homenagem à sua pouca graça característica, com a qual as pessoas não se importam, porque sabem que tem um coração grande e que dá muitas graças, e porque toda a gente tem uma tia com uma cara daquelas E ainda com bigode!
Ezio, o Grego, gostava da história da Santa, que contava aos visitantes do seu restaurante à beira da Praia da Amuada.
Enfim, uma história bem diferente da sua, que se encontrava apenas a contemplar um horizonte tão desconhecido, tão distinto do da ilha onde nascera e vivera até ser homem mas que nunca lhe preenchera o vazio da alma como este o fazia e, misteriosamente, a imagem da sua Adelaide surgiu das águas qual ninfa que ele nunca havia visto no seu mar.
Se a imagem de deusa do Olimpo cativou este singelo grego com feições de águia, a sua voz de Amália Rodrigues de garagem, a sua doçura de carácter e uma honesta admiração pelos seus cozinhados diferentes e exóticos ao seu paladar fizeram com que se sentisse em casa e chamasse de lar aos Casais de Santa Helena, abrindo um restaurante de comida típica grega, que era o que sabia fazer melhor, isso e escutar as pessoas, o Il Grieco, com o poster do Parthénon numa das paredes e imagens de pratos convidativos com nomes apelativos como Taramosalata, Suvlakia, Baklavas ou Karidópita, e partilhando a existência nestes últimos 30 anos com uma cadelinha minúscula de nome Andorinha.
Na verdade, a Andorinha não durava há 30 anos, nenhum canídeo o consegue fazer, mas a adoração que o Sr. Ezio e a D. Adelaide tiveram pela sua primeira Andorinha, fazem com que a substituam por uma mini-cadela semelhante cada vez que a sua antecessora desencarna. E dão o mesmo nome. É algo confuso para as pessoas normais compreenderem, mas eles são felizes assim, como foram as 8 Andorinhas que privaram com eles.
O Sr. Ezio, desta vez acompanhado apenas da Andorinha, admirava a manhã fresca e as maravilhosas cores de um dia de Verão sobre a ilha e a linha do mar, das quais nunca se cansava.
Mais abaixo, uma das meninas do café-livraria caminhava num passo tranquilo, com o seu caderno de desenhos debaixo do braço, como ele a admirar a formosura da paisagem com a sua sensibilidade artística e a escolher com que cores da sua paleta de aguarelas iria pintar aquela imagem, e sob que plano.
Passava agora junto ao velho nicho da Santa, onde parou para acender uma vela que se apagara numa outra que estava acesa, para que a Santa visse as graças pedidas e os agradecimentos do povo que a adorava.
Porque a Santa tudo sabia, a Santa tudo adivinhava.
Assim o dizia o Padre Cândido, que vinha celebrar a missa semanal na capela.
Assim o dizia a velha Lúcia, que já era velha quando Ezio chegara, de caracóis negros, em vez dos cinzentos que lhe cobriam agora a cabeça, velha e sábia, que falava como as sibilas da sua aldeia, as do pequeno templo no cume do monte, não mais que um minúsculo casebre com uma fonte dentro cuja frescura lhes sabia aos céus comparada com exterior quente e abafado, as mulheres que viviam nas grutas e queimavam folhas de louro e de salva para adivinhar o futuro, o passado e o presente.
Ezio pensava se alguma vez ela tinha sido nova, mas sabia que sim, havia uma mesinha na sua casa com fotografias de uma jovem morena de cabelos longos e grossos e formas de sereia como as que o Frade antigo descrevera, rodeada de jovens com olhares admiradores, mais atrás, e depois só de um jovem, o que tinha o olhar mais sério e fixo, numa foto em que ela era uma noiva de branco, e depois outras, com um bebé roliço, e depois uma menina com os mesmos olhos, o mesmo sorriso e o mesmo cabelo farto, que ele sabia ser a sua filha Isabela.
Sim, ela tinha sido nova, e muito bela, e muito amada também, ainda o era, a filha e os netos estimavam-na amorosamente, ele via, mas acreditava que a sabedoria de sibila já a trazia de outras vidas, achava ele, que tinha essa crença, e se a velhota dissera que tinha sido aquela mulher dos gritos, e a Santa também, quem era este Inspector Sebastião Lobo para dizer que não, que o Doutor Melo tinha tirado a sua vida, ou que tinha sofrido um acidente, que tinham encontrado uma bala, mas de um tamanho insignificante e num lugar onde não causara danos mortais, parecia tratar-se apenas do descuido da própria pessoa a manusear a arma, porque a senhora, chorosa, lhe tinha dito que não, que nessa noite tinha ido ao cinema com uns amigos, até tinha ali o bilhete enfiado na enorme mala de marca, e nunca tinha visto pistola nenhuma, que ideia, nem sabia nada disso, e estava o caso arrumado.
Aborrecido por os seus pensamentos terem fugido para esse assunto desagradável, Ezio levantou-se repentinamente, assustando a pequena Andorinha, que soltou um latido de protesto perante tal desrespeito, e avançou até ao mar, para molhar os pés na água salgada, que diziam na terra dele, e aqui também, que a água salgada limpava o espírito, e ele queria era limpar os pés, os pensamentos e que este Inspector Lobo fosse às de Vila Diogo, que tinha vindo para aqui para criar a desarmonia entre irmãos e deixar fugir a passarola grande! Acalma-te, Ezio, acalma-te, olha que depois treme-te a mão para o Pastitsio!



O castelo na penumbra

Sintra, Novembro de 1827. O vulto do jovem homem de cabelo loiro passou de novo, rapidamente. Desta vez, quase o conseguiu ver pelo canto do...