sábado, 29 de junho de 2019

O Crime na noite de Solstício de Verão - Capítulo 1.


D. Aldegundes sabia que algo estranho se passava. Chamem-lhe sabedoria, instinto, experiência de vida, sinais do Universo, mensagens do Anjo da Guarda ou de algum antepassado do Além, o que seja.
Percebeu isso ainda antes de acordar quando estava naquele sono da madrugada, já não tão profundo, mas um pouco antes do despertar, o que nos revela segredos ocultos e destinos incertos, como tinha visto no outro dia no programa do Sr. Goucha, que homem tão sábio, tão masculino, com aquele fato, que bigode tão excitante, que calores que lhe davam ao peito, só de pensar nele já ficava com palpitações, pobre do seu Abílio, Deus o tenha, se soubesse!
Enfim, esse sonho trouxe uma recordação, uma noite de Solstício há muitos anos atrás, ainda era ela uma menina de 17 anos, que ela não era velha mas, enfim, os cabelos brancos… com a permanente da moda, claro!, as fogueiras acesas na beira da praia, junto à azenha, numa noite de lua cheia, limpa, mas a que uma suave brisa trazia a ameaça da tempestade para a madrugada, e lá estavam eles, tão inocentes, tão descontraídos, tão felizes, mesmo antes da tempestade desabar sobre eles, como a que acontecera nessa madrugada e que destruíra parte do moínho do moleiro: o Vitorino, calado e pensativo, como toda a vida o fora, até ao dia 12 de Abril de 1976, quando passou a ser a pessoa mais colorida e palradora da terra, a Isabela, filha da Lúcia, com um vestido que parecia uma camisa de noite, os cabelos soltos e o ar do outro mundo que elas costumavam ter, o Eduardo (agora Dr. Melo, mas antes apenas um rapaz sorridente confiante de que ia conquistar o mundo), ele e a Mina, abraçados, a trocar segredos de futuro, o Cândido e a Prudência, que só tinham olhos um para o outro, ela e o António, o seu namorico da altura, filho do Esteves da antiga barbearia.
No dia seguinte, tudo iria mudar para alguns deles: o Eduardo ia para a casa dos tios em Braga, para conhecer a rapariga com quem o queriam casar, e que foi a esposa dele durante toda uma vida, 40 anos sempre tão amigos, para depois ele a despachar por uma galdéria oxigenada de 30 anos com umas mamas do tamanho de melancias, Jasus! Nossa Senhora! pobre Luisinha, tão bem posta, aceitou sem se queixar, bem vistas as coisas, ficava com a casinha dela, e tinha o dinheirinho dela, os meninos já todos encaminhados na vida, sempre era menos uma preocupação e camisas para passar, agora aproveitava para dar uns passeios, de onde é que ela lhe tinha mandado o postal? ah, da Polinésia, pois, coitadinha, realmente, e a Mina apareceu com uma menina uns tempos depois, coisa mais linda, também, coitada, o rapaz foi lá para a França e caiu de um andaime antes da menina nascer, e ela ficou assim, sempre viúva, era só ver o amor daquela mãe por aquela filha e vice-versa, e o Cândido foi para o Seminário, um rapaz que era a loucura das meninas da terra, tão jeitoso, tão bem falante, uns beijos que as deixavam com a cabeça a andar à roda, enfim, ela era nova, o que é que se pode fazer, e a Prudência ficou tão desconsolada, nunca mais arranjou rapaz, dizia que, se a única vez em que ia estar no altar fosse para o ver do outro lado, e não ao lado dela, isso era coisa para a qual ela não tinha forças, mas isso só elas duas sabiam, que a Prudência, mais forte que um touro, se aguentara à afronta como se não fosse nada com ela, se ele queria ver Deus num livro e não nos braços de uma mulher, era lá com ele, e bem parvo era, e dos beijos atrás da azenha nas Festas de Santa Helena, nunca a Prudência soube e assim era melhor, e na manhã seguinte aparecera o Abílio, que era primo do António, que vinha para aprender o ofício na barbearia, um bigodinho a despontar, ela sempre tinha sido muito fraca com os bigodes, e nunca mais o António lhe passou pela cabeça, mas ele não se ficou pelos ajustes e casou logo com outra prima e tiveram uns meninos que por acaso até eram parecidos com o vizinho deles, só a Doce Inês é que lhe fazia o coração mole, ficara com a barbearia do pai e fizera daquilo uma coisa bonita, um cabeleireiro cheio de cores e brilhos, e nisto o fogo levanta-se, atrás do Eduardo, e ela olha para aí, ele olha-a nos olhos, sorri e diz “não te esqueças de mim”, e depois voltou a imagem do Sr. Goucha e a D. Aldegundes perdeu-se no sonho outra vez.
Depois, o resto da manhã ficou estranha.
O estore do quarto ficou preso, a torrada ficou presa na torradeira, o salto da sandália ficou preso num buraco da calçada, até a máquina do café da livraria não dava nada a ninguém porque tinha qualquer coisa presa, e a chave da sua lojinha de revistas, romances Harlequím, toalhas, chapéus, baldes e pázinhas e todos os acessórios para a praia, ficou presa, teve de lhe dar dois puxões e outros tantos palavrões e lá despencou.
Foi então que ouviu as sirenes atrás de si e percebeu o que o Destino lhe estava a dizer: algo estranho se passava.
Curiosamente, em vez de correr atrás das sirenes, D. Aldegundes respirou fundo, sorriu, rodou a segunda volta da chave com toda a facilidade e entrou na sua banca, com a segurança de quem não precisava de correr atrás das novidades: elas vinham ter com ela.
Porque aqui, nos Casais de Santa Helena, uma pacata aldeia à beira do mar, com a sua respectiva ilha, com uma capela de 500 anos com uma santa encontrada na maré vazia, meia dúzia de lojas, uma dúzia e meia de casas ocupadas durante todo o ano e muitas mais dúzias durante o Verão, só há um lugar onde tudo vem parar, como a corrente que trouxe a Santa à terra, de onde saem todas as novidades, todas as alterações de vida ou de estatuto, o “Diabo” em primeira mão, e é a loja da D. Aldegundes, aqui nascida e criada, que conhece toda a gente e toda a gente a conhece e aqui vem, mesmo que sejam os miúdos  no Verão, para comprar Super Gorilas e levar dois balões no bolso.
Tranquilamente, D. Aldegundes prendeu a porta, acendeu a luz, abriu as cortinas, ajeitou os totolotos, sentou-se e esperou, com a revista Genoveva nas mãos, que podia estar à espera, mas não era uma pessoa ociosa e aproveitava estas ocasiões para se encher de conhecimentos através da sua leitura assídua.
Não teve de esperar muito tempo.
Antes de se terminar de ouvir o som das sirenes ao fundo, para os lados da Porta do Moínho, já ela tinha a casa cheia. Era só um bando de adolescentes, uma meia dúzia, não, deixa ver, e o pequenito da Lúcia, são sete, não se sabe como, mas cabe aqui um número improvável de pessoas, mesmo assim, e este adivinhava-se já um dia promissor, ainda só eram 9 horas e já estava a casa cheia, todos a falar ao mesmo tempo, era um a dizer que tinham acordado a maldição do Moleiro à meia-noite, outro a dizer que a bisavó andava já nas ruas a dar bengaladas nas canelas dos incautos e a grunhir “Foi ela, foi a cobra!”, um ainda jurava que tinha visto um demónio na labareda da fogueira, isto não estava a entrar bem na cabeça da D. Aldegundes, porque águelas horas fazia-os a todos em casa já no terceiro sono, não compreendia esta juventude de agora, e com aquela comoção, mais gente se sentiu atraída para a pequena loja de onde nasciam todas as cascatas de informação naquela terra.
Entra então alvoroçada a Doce Inês, com a notícia fresca, ainda a escaldar, como o pão acabado de sair do forno: “Foi alguém que se atirou da Porta do Moleiro!”; logo a seguir, viu-se a cabeça invulgarmente loira da Mariska, do alto dos seus 1,93 cms, a destacar-se das restantes cabeças dentro da loja, “Foi o Dr. Melo, caiu lá de cima!” afirmou, com o seu sotaque de leste ainda evidente. Como ela já tinha acesso a essa informação, era em si um mistério, mas talvez fosse facilmente explicado pelo comprimento das suas pernas e pelo seu apurado treino militar.
“Ou foi empurrado…” ouviu-se num murmúrio, sem se perceber muito bem se nascera do chão, se viera da porta ou se era o reflexo do pensamento das pessoas que se iam juntando: o Grego e a esposa, a Dona Adelaide, do restaurante mais abaixo, a Menina Mei e a Gelzi do Grande Bazar, que se juntavam agora à sua colega Mariska, todas de braço dado, encolhidas umas contra as outras, quais harpias a adivinhar desgraça, a Dona Prudência e o Sr. Vitorino, a Guida do café da livraria com o gato a espreitar desinteressado no colo dela, e a Mina da Frutaria, o inglês, que vinha dar uma caminhada com o seu filho mais novo, a rapariga gótica da loja de artesanato, até o Tópê do bar, habitualmente a hibernar a estas horas, depois da rambóia da noite anterior.
D. Aldegundes fixou-os em silêncio, observando-os com o seu olhar atento e perspicaz.
A audiência olhava para ela, à espera de uma resposta, de uma instrução, de uma solução.
Era sabido por toda a aldeia que o Dr. Melo não se dava com a esposa, andava por aí com ela a gritar em plena rua por tudo e por nada, e ele com a calma de quem já aceitou que não pode mudar o destino.
O que andaria ele a fazer por aqueles lados e áquela hora? Ou tinha ideias nefastas em mente, e tinha feito o que já tanta gente desesperada tinha feito, ou tinha sido apanhado em alguma armadilha, mas lá por se dar mal com a rapariga, não queria dizer que ela tinha cabeça para o atirar dali abaixo, havia de ser qualquer coisa mais complicada.
A primeira mulher, não, que estava no estrangeiro e sempre fora um anjo, um doce de menina mas, enfim, os desejos de vingança calham a qualquer um. Seria algum paciente ou familiar insatisfeiro? Ou alguma negociata de que nada se sabia?
Às vezes, as vidas das pessoas parecem tão simples, então aqui na aldeia, que a descoberta da existência de uma vida dupla e oculta causa a maior das surpresas.
Era nisto que a D. Aldegundes pensava quando conseguiu ainda encaixar-se na loja o Padre Cândido a correr e aos saltos, que coisa tão rara, a gritar “Foi a Anaconda, prenderam a mulher, já estava a vasculhar a casa dele com dois capangas! Prenderam agora a Ana Conda! A Santa adivinhou!”
O seu nome não era esse, era Ana Sónia Conde, e apelidava-se sempre pelo segundo nome, embora as pessoas tivessem a tendência para o uso do primeiro e, eventualmente, ao descobrirem um pouco mais a sua personalidade, para usar o nome porque se tornara conhecida, Ana Conda…
Nisto, o Padre dá mais um salto, uiva, e compreende-se finalmente o porquê deste comportamento absurdo: atrás dele estava Lúcia, uma velhinha enigmática e raquítica, vestida de preto, o lenço também preto a cobrir-lhe o cabelo completamente alvo preso numa trança enrolada num puxo, mulher de grandes mistérios, bisavó do Tópê e do Bruno, que diz na sua voz rouca de oráculo “Foi ela, foi a cobra!”.



quinta-feira, 20 de junho de 2019

O Crime na noite de Solstício de Verão.

Prólogo.

A noite era perfeita. A lua cheia brilhava num céu limpo, o aroma das ervas silvestres apanhadas recentemente nos campos era mais intenso com a noite, depois de um dia de calor pesado. O cheiro das fogueiras do solstício subia pela brisa quente que se levantara ao pôr-do-sol, arrastando pesadas nuvens ao longe, numa ameaça de tempestade para as horas densas da madrugada.
Uma noite perfeita para mistérios, bruxaria improvisada e aparições fantasmagóricas, assim o pensava um grupo de adolescentes que se dirigia, de forma meio séria, meio de brincadeira e com umas pitadas da irreverência típica, ao cimo da falésia, sob a inspiradora lua cheia, perto da meia-noite, para chamar do além o espírito do moleiro, na sua noite, para fazer justiça aos vivos ou, pelo menos, para ver se os rituais do livro de feitiços da tia-avó da Teresinha e avó do Bruno resultavam.
Apenas alguns corajosos se aventuraram: a Teresinha, a Mónica, a Marta, o Miguel, o Filipe, o Bruno, colegas do liceu, na cidade, e a Patrícia, irmã mais nova do Filipe. Sete, o número mágico requerido. Havia velas, coroas com flores da época, bolos de mel, pentagramas, capas escuras, unhas pintadas de preto, um isqueiro e um maço de tabaco roubados ao pai e, sabe-se lá porquê, um livro do Paulo Coelho numa mala de pano a tiracolo com padrão de gatinhos.
Dizia a lenda que, na noite de Lua Cheia do Solstício de Verão, à meia-noite, o moleiro havia saído do seu moínho e caído na falésia poucos metros à frente. O corpo nunca fora encontrado, preso nas rochas lá em baixo, ou arrastado pela corrente para o fundo. A alma, dizia-se, estava perdida, à procura do corpo que não vira desaparecer e que, em noites destas, se evocada da forma certa por alguém intrépido o suficiente para sair da aldeia, subir a colina até à ruína da Porta do Moinho à beira da falésia, aparecia a revelar mistérios e a desafiar a coragem do atrevido.
A lenda não dizia que havia de ser com as ervas mágicas do livro, nem com as velas das cores do Solstício acesas num pentagrama desenhado na areia sobre o qual um grupo de adolescentes formava um círculo, de mãos dadas, a trocar olhares de uma maturidade pouco habitual e com algumas risadinhas pelo meio, mas o livro dizia, e era por aí que eles se guiavam.
A brisa levantou um pouco mais, e depois com mais intensidade, de forma repentina, alvoroçou as capas e os cabelos e apagou todas as velas excepto uma, a do centro, como que arrastando as chamas para a balaustrada de pedra à beira da falésia.
Da Casa da Bruxa, no outro lado da estrada, ouviu-se o gemido do vento a passar nas telhas, como se o buraco não tivesse sido arranjado há mais de cinco anos, e um silvo súbito atrás deles quebrou a vibração do vento, sobressaltando os jovens.
Da direcção da falésia, um vulto negro e alto gemia e cambaleava à luz da lua cheia.
Fosse verdade ou não, ninguém quis saber se o espírito do moleiro havia sido libertado para vir fazer justiça pelas suas mãos sedentas, e bastou um olhar trocado entre os amigos para decidir que a opção mais acertada seria correr pela colina abaixo a toda a velocidade, em direcção a porto seguro, uma risada medonha a soar atrás deles enquanto corriam pelas suas vidas e pelas suas almas.
A chuva forte que caiu na madrugada limpou quase todos os vestígios do ritual, e deixou a descoberto o corpo do Dr. Melo lá em baixo, preso entre duas rochas, as pernas a mover-se com a ondulação, o olhar espantado de quem não esperava receber a morte nos braços nessa noite.

“Liberdade”, uma voz dizia baixinho para o vento, ao bater a meia-noite na capelinha lá em baixo na aldeia, no momento em que a decisão que tomara se tornava na única opção.
“Finalmente liberdade!”, sussurrava ao mar enquanto via a decepção no olhar em frente a si e o corpo a cambalear com a surpresa e a dor da pequena bala no abdómen, suficientemente perto da falésia para se desequilibrar e cair no abismo da escuridão.
“Será mesmo a liberdade?”, uma semente de dúvida instalou-se no fundo da mente de quem empunhava a arma diminuta com um silenciador encaixado; talvez a bala tenha sido desnecessária, uma queda acidental ou duvidosa não iria gerar questões.
Um sorriso acalmou o coração. As questões que a bala iria despertar eram perfeitas para o plano resultar.
A gargalhada presa na garganta pela tensão do momento libertou-se na brisa que corria mais rápida, voando atrás dos calcanhares dos jovens, um dos quais corajoso o suficiente para virar a cabeça e olhar o espírito desafiador dono de uma risada que lhe soava familiar.



O castelo na penumbra

Sintra, Novembro de 1827. O vulto do jovem homem de cabelo loiro passou de novo, rapidamente. Desta vez, quase o conseguiu ver pelo canto do...