Bocas de dama.
Uma hipótese seria fugir do convento. Era tão fácil, para mim, que já fugi tantas vezes.
Dos lugares, das pessoas, das decisões.
Sim, seria fácil demais, e não é isso que quero agora.
Bastaria um olhar, e Samuel teria coragem de atravessar o que restava do muro meio destruído.
Qualquer aproximação maior que esta era perigosa, e isso já eu o sabia.
Muitos anos de corações despedaçados ensinaram-me que não há melhor companheiro para uma pessoa como eu do que a solidão.
Houve uma altura, por breves momentos, em que julguei que fosse possível buscar companhia, um parceiro, um cúmplice, mas a culpa era algo que exigia demasiada energia, e acabei por desistir da ideia.
Finalmente, encontrei o lugar perfeito, e julgava-me, quem sabe, salva dos meus próprios demónios; mas não, penso que isso não seja possível, pois até aqui, neste sítio que escolhi, neste refúgio para o alvoroço do meu coração, eles me perseguem e encontram, e continuo a esforçar-me por olhar nos olhos e ver as almas das pessoas, mas o que vejo, única e apenas, são os seus corações palpitantes de dramas e de anseios, e a minha cada vez mais descontrolada voracidade.
Percebam que eu não estou aqui por vocação. Quase nenhuma de nós está, na verdade, com pecados mais pesados, ou mais leves, estamos aqui devido à nossa singela condição de mulher.
Algumas como que encarceradas em vida, com desejos, vontades e opiniões que não se encaixam na sociedade onde vivemos e que são tidos como escandalosos, mas a maioria de nós refugiadas dessas lutas onde nunca a vitória é nossa, resguardadas dos homens, dos medos, dos pecados.
Da vida.
Mas, desta vez, só desta vez, decido não fugir.
A pequenina está doente e, tenho de o admitir, toca-me ao coração. A mim, que não o tenho. Não posso abandonar as minhas irmãs, nem por causa de um par de olhos que promete saciar toda a fome que trago neste buraco do peito.
Não o quero.
Deixo-me antes devorar pelo meu coração, em vez que procurar devorar outros.
Por uma vez, há que admitir a derrota.
E é tão libertadora!