terça-feira, 23 de abril de 2019

A Devoradora de Corações - 5.


Bocas de dama.


Uma hipótese seria fugir do convento. Era tão fácil, para mim, que já fugi tantas vezes.
Dos lugares, das pessoas, das decisões.
Sim, seria fácil demais, e não é isso que quero agora.
Bastaria um olhar, e Samuel teria coragem de atravessar o que restava do muro meio destruído.
Qualquer aproximação maior que esta era perigosa, e isso já eu o sabia.
Muitos anos de corações despedaçados ensinaram-me que não há melhor companheiro para uma pessoa como eu do que a solidão.
Houve uma altura, por breves momentos, em que julguei que fosse possível buscar companhia, um parceiro, um cúmplice, mas a culpa era algo que exigia demasiada energia, e acabei por desistir da ideia.
Finalmente, encontrei o lugar perfeito, e julgava-me, quem sabe, salva dos meus próprios demónios; mas não, penso que isso não seja possível, pois até aqui, neste sítio que escolhi, neste refúgio para o alvoroço do meu coração, eles me perseguem e encontram, e continuo a esforçar-me por olhar nos olhos e ver as almas das pessoas, mas o que vejo, única e apenas, são os seus corações palpitantes de dramas e de anseios, e a minha cada vez mais descontrolada voracidade.
Percebam que eu não estou aqui por vocação. Quase nenhuma de nós está, na verdade, com pecados mais pesados, ou mais leves, estamos aqui devido à nossa singela condição de mulher.
Algumas como que encarceradas em vida, com desejos, vontades e opiniões que não se encaixam na sociedade onde vivemos e que são tidos como escandalosos, mas a maioria de nós refugiadas dessas lutas onde nunca a vitória é nossa, resguardadas dos homens, dos medos, dos pecados.
Da vida.
Mas, desta vez, só desta vez, decido não fugir.
A pequenina está doente e, tenho de o admitir, toca-me ao coração. A mim, que não o tenho. Não posso abandonar as minhas irmãs, nem por causa de um par de olhos que promete saciar toda a fome que trago neste buraco do peito.
        Não o quero. 
Deixo-me antes devorar pelo meu coração, em vez que procurar devorar outros.
Por uma vez, há que admitir a derrota.
E é tão libertadora!


segunda-feira, 1 de abril de 2019

A Devoradora de Corações - 4.


Beijinhos de freira

Na véspera de São João, Soror Imaculada construia na sua pequena estufa um singelo altar de ervas do campo, segundo os preceitos das suas leituras pagãs, que não chegavam aos ouvidos da Madre Superiora, é claro. Ou das suas leituras do Evangelho.
Porque a Irmã Imaculada acabava por se confundir com as duas coisas: era, de um lado, o amor ao próximo, do outro, o amor à natureza, depois, era o amor a todas as coisas vivas!… Pois não se havia ela de confundir? Não era tudo, basicamente, amor?
Para ela, que tudo amava, desde a oração à Mãe Divina até às pequeninas flores amarelas do verbasco quando floriam, até às delicadas orelhas de recém nascido que a lembravam sempre da sua sobrinha, o que a confundia era a religião, porque, desde sempre, o amor sempre estivera bem claro.
Talvez fosse da idade, que já não estava a caminhar para nova, ou talvez de privar com tantas plantas travessas, na sua função de boticária.
Bem, a falar a verdade, as plantas não eram travessas.
Ela é que era.
E a Irmã Generosa, sua cúmplice nas marotices, claro; não se haviam mantido companheiras de cela e de vida há tantos anos sem que uma não espicaçasse a traquinice que havia dentro da outra.
Eram humanas, afinal!
E a vida num convento pode tornar-se aborrecida.
Que melhor mistura do que uma cozinheira e de uma boticária, com quase tantos anos de casa, a partilhar quase todos os momentos: missas, confissões, rezas, actividades do dia-a-dia, e até a própria cela?
O resultado, em termos práticos, era, num dia, ter as monjas ensonadas na missa à conta de um azeite com pedaços de valeriana deitado na sopa, no outro dia, a levantarem-se constantemente da fila da confissão, sob o olhar pasmo do Padre Victor, para ir à casinha, fosse por se ter misturado o pó das folhas do sene nas papas de aveia do pequeno-almoço, ou por se ter misturado uns ramos de cavalinha à hortelã para a infusão da merenda, ou noutro andarem saltitantes e alegres que nem faunos da floresta à conta do pó das bagas de guaraná secas misturado na sobremesa do almoço. E muito aflitas para fazer xixi, também. Aos saltinhos.
Na verdade, a travessura que mais as divertia era a do licor com as raspas de pau de cabinda, que deixava as mais jovens afogueadas, com calores insuspeitos e desejos lascivos, já que não o davam às mais velhas, não fosse alguma ser mais fraca do coração e dar-lhe alguma coisinha má, e aí já se metiam em sarilhos!
Ou à Irmã Maria do Céu, que não precisava. Por motivos óbvios.



O castelo na penumbra

Sintra, Novembro de 1827. O vulto do jovem homem de cabelo loiro passou de novo, rapidamente. Desta vez, quase o conseguiu ver pelo canto do...