CAPÍTULO 2 – “O BAILE DA SOCIEDADE RECREATIVA”
“Mais um dia resplandecente na nossa cidade, aqui ao som dos Alphaville, na RádiOeste, a rádio da sua escolha. Eu sou o Sérgio Lopes e vou estar consigo nas próximas horas.”
7 horas da manhã num soalheiro dia de Agosto na aldeia da Cadriceira. Um dia perfeito para o que se adivinhava, e que havia sido planeado com meses de antecedência... ou talvez não...
Maria Odete desperta ao som da música, põe o rádio um pouco mais alto e abre a torneira da banheira, enquanto espreita se a irmã gémea, Odete Maria, já acordou.
Não. Odete Maria dorme descansada o sono dos justos depois de labutar até à 9 da noite na sua modesta sexshop, marcando o preço nas cuecas que se comem (com sabor a framboesa, menta, banana, laranja-papaia e frutos tropicais) que chegaram ao fim da tarde e aviando uma remessa de dildos cubanos para a casa da Lanterna Vermelha, em Pontével.
Depois de semanas a trocar as voltas ao sangue do seu sangue, à carne da sua carne, e de andar a frequentar os ensaios para a procissão, hoje sim, finalmente, era o seu dia de glória, a sua ascensão!
... desde que conseguisse eliminar a sua própria irmã de forma desleal, para só uma delas – ela própria, quem mais? – estar presente no desfile de andores, representando a pureza e a solenidade da Nossa Senhora!
Era só esperar que ela não acordasse enquanto lhe esvaziava a gaveta da roupa interior absurdamente ousada (onde se encontrava a que Odete Maria planeava usar...), a levasse para o quintal e a desfizesse com o cortador de relva...
Má sorte ou, como diria o espanhol naquele seu timbre particular e característico, “Puta Madre!”
Odete Maria não dorme. Vigia. Espia a que foi sua companheira de placenta durante 9 meses. E espera. Ela começou a desconfiar: a desmarcação de tantos ensaios, e sempre a mesma pessoa, com aquela voz nasalada, porém estranhamente familiar. E ir a ensaios marcados, para descobrir que, afinal, não existiam.
Era uma dolorosa facada na carne tenra das suas costas esta traição de Maria Odete! Mas a traição não seria completa! Odete Maria estava preparada! Sabia como agir! Era a hora!
Óscar, o padeiro, passava ali àquela hora precisa. Só necessitava de um engodo – ela própria, com aquela vaporosa camisa de noite modelo Grace Kelly, para o atrair à capoeira...
Rápido e infalível! Com o padeiro enclausurado num cárcere trancado por fora com o cadeado da bicicleta, Odete Maria pôs mãos à obra.
Apanhando Maria Odete a jeito no quintal, agarrada como nunca ao cortador de relva, Odete Maria deu-lhe primeiro na cara com a água dos pintos e depois com o tacho de barro. Arrastou a sua irmã desmaiada para o meio das merendeiras e acelerou direita ao descampado ao lado do terreno do serial killer da Cadriceira, famoso nos anos 70.
Agora só lhe restava voltar. Não havia de ser difícil, com uma vaporosa camisa de noite modelo Grace Kelly...
Às 4 horas da tarde, sai da Igreja a procissão da Cadriceira, para dar a volta à aldeia com os andores enfeitados com carinho e devoção, os anjinhos de asas dependuradas e alguns ainda lambuzados de gelado, e a maravilhosa imagem da Nossa Senhora na...
Mas será possível? Duas imagens? Será um milagre? Será um sinal? Mas então, porque é que uma tem a testa inchada e um olho negro? Porque é que a outra tem cinto de ligas, meias de rede, sapato de salto agulha e cueca fio dental? E por todos os santos e anjos das nuvens celestiais, porque é que elas andam à estalada como dois galos num ringue de apostas ilegais?
Algumas horas depois, com as irmãs mais calmas e com os ardores sossegados (e finda a procissão, inevitavelmente mais cedo do que o previsto...), encontram-se já na Sociedade Recreativa os habitantes da Cadriceira, os seus amigos e convidados, para desfrutarem do baile abrilhantado pela banda local Da Rat, pelo Rancho Folclórico da própria Sociedade e pelo Bruno do talho, que além de cantar no rancho, ainda toca órgão em casamentos, baptizados e arraiais em geral.
Convém também à autora desta epopeia informar o leitor mais incauto que nunca esta festa teve um desfecho assim... pacífico...
E esta era outra que tal.
Percebeu-se logo, à sua segunda mini, que a noite ia ser de estalo para R.J., o Fanhoso, que cochicha alguma coisa com o Bruno e logo ali arrecada do bolso um papel, enquanto o companheiro se dirige ao órgão.
Então, ao som do “My heart will go on”, de Céline Dion, interpretado livremente pelo Bruno do talho, R.J., o Fanhoso coloca-se vacilantemente em cima da cadeira e entoa a sua obra: a “Ode à Maria Odete”.
“Anda cá dá-me uma beijoca”
Diz a Maria Odete em brasa
Esta mulher parece uma foca
Mas é só por causa da barba
O Sandokan trouxe os amigos,
Maria Odete ajeita o suspensório
Confia o bigode e olha para o ar
“Acho que vamos ter um casório!”
Vai direita para a cozinha
Com a cabeça na panqueca
“Se calhar ainda há tempo
Para jogar uma partida de sueca.”
Ai Maria Odete, minha granda maluca!
Mas que bela mão para a caldeirada!
Nesta terra não há mulher como tu!
É uma raça bem disfarçada...
Maria Odete, na cozinha, ainda com a testa inchada e o olho esquerdo na tonalidade Belenenses, concentrada na sua caldeirada, apanha uns laivos da dedicatória, o suficiente para o saco de 5 kg de pó laxante que tinha nas mãos cair em peso no tacho da caldeirada.
Uma distracção que não foi sentida por Maria Odete, mas que o foi, indubitavelmente, pelos infelizes que comeram daquele repasto, e que começaram, primeiro de modo discreto, depois de forma mais óbvia, a ocupar os lavabos do edifício.
Entre eles António Luís que, ao recolher-se ao wc de serviço provoca, sem dar por isso, a derrocada das grades empilhadas à balda e barrica-se a ele próprio.
Foi a pior altura, deve ter pensado, para descobrir que sofria de claustrofobia, mas estas coisas são como a diarreia, que nunca aparece nas melhores alturas, não se sabendo, é claro, qual é a melhor altura, mas como agora até há aquele medicamento, não é nada de muito preocupante.
Para sorte de António Luís, andava a rondá-lo a Débora, a transexual, mas como não podia alombar com as grades, que tinha arranjado as unhas nessa tarde, fez-lhe companhia a cantar o “My heart will go on”, que o Bruno continuava a tocar em transe, como se isto fosse o Titanic, e não o Baile da Sociedade Recreativa, onde havia o caos, as pessoas a correr para as casa de banho, os Bombeiros a chegar, o guarda Arnaldo semi-nu enrolado com a Giséla Sóráia debaixo da mesa, os Da Rat a um canto muito sorridentes debaixo de uma nuvem de fumo.
... ou não fosse este um Baile como os outros todos, na Sociedade Recreativa da Cadriceira...
Uma parte deste capítulo é dedicada ao Sérgio Lopes, o sacana que me caloirou quando fui para o liceu.
“Mais um dia resplandecente na nossa cidade, aqui ao som dos Alphaville, na RádiOeste, a rádio da sua escolha. Eu sou o Sérgio Lopes e vou estar consigo nas próximas horas.”
7 horas da manhã num soalheiro dia de Agosto na aldeia da Cadriceira. Um dia perfeito para o que se adivinhava, e que havia sido planeado com meses de antecedência... ou talvez não...
Maria Odete desperta ao som da música, põe o rádio um pouco mais alto e abre a torneira da banheira, enquanto espreita se a irmã gémea, Odete Maria, já acordou.
Não. Odete Maria dorme descansada o sono dos justos depois de labutar até à 9 da noite na sua modesta sexshop, marcando o preço nas cuecas que se comem (com sabor a framboesa, menta, banana, laranja-papaia e frutos tropicais) que chegaram ao fim da tarde e aviando uma remessa de dildos cubanos para a casa da Lanterna Vermelha, em Pontével.
Depois de semanas a trocar as voltas ao sangue do seu sangue, à carne da sua carne, e de andar a frequentar os ensaios para a procissão, hoje sim, finalmente, era o seu dia de glória, a sua ascensão!
... desde que conseguisse eliminar a sua própria irmã de forma desleal, para só uma delas – ela própria, quem mais? – estar presente no desfile de andores, representando a pureza e a solenidade da Nossa Senhora!
Era só esperar que ela não acordasse enquanto lhe esvaziava a gaveta da roupa interior absurdamente ousada (onde se encontrava a que Odete Maria planeava usar...), a levasse para o quintal e a desfizesse com o cortador de relva...
Má sorte ou, como diria o espanhol naquele seu timbre particular e característico, “Puta Madre!”
Odete Maria não dorme. Vigia. Espia a que foi sua companheira de placenta durante 9 meses. E espera. Ela começou a desconfiar: a desmarcação de tantos ensaios, e sempre a mesma pessoa, com aquela voz nasalada, porém estranhamente familiar. E ir a ensaios marcados, para descobrir que, afinal, não existiam.
Era uma dolorosa facada na carne tenra das suas costas esta traição de Maria Odete! Mas a traição não seria completa! Odete Maria estava preparada! Sabia como agir! Era a hora!
Óscar, o padeiro, passava ali àquela hora precisa. Só necessitava de um engodo – ela própria, com aquela vaporosa camisa de noite modelo Grace Kelly, para o atrair à capoeira...
Rápido e infalível! Com o padeiro enclausurado num cárcere trancado por fora com o cadeado da bicicleta, Odete Maria pôs mãos à obra.
Apanhando Maria Odete a jeito no quintal, agarrada como nunca ao cortador de relva, Odete Maria deu-lhe primeiro na cara com a água dos pintos e depois com o tacho de barro. Arrastou a sua irmã desmaiada para o meio das merendeiras e acelerou direita ao descampado ao lado do terreno do serial killer da Cadriceira, famoso nos anos 70.
Agora só lhe restava voltar. Não havia de ser difícil, com uma vaporosa camisa de noite modelo Grace Kelly...
Às 4 horas da tarde, sai da Igreja a procissão da Cadriceira, para dar a volta à aldeia com os andores enfeitados com carinho e devoção, os anjinhos de asas dependuradas e alguns ainda lambuzados de gelado, e a maravilhosa imagem da Nossa Senhora na...
Mas será possível? Duas imagens? Será um milagre? Será um sinal? Mas então, porque é que uma tem a testa inchada e um olho negro? Porque é que a outra tem cinto de ligas, meias de rede, sapato de salto agulha e cueca fio dental? E por todos os santos e anjos das nuvens celestiais, porque é que elas andam à estalada como dois galos num ringue de apostas ilegais?
Algumas horas depois, com as irmãs mais calmas e com os ardores sossegados (e finda a procissão, inevitavelmente mais cedo do que o previsto...), encontram-se já na Sociedade Recreativa os habitantes da Cadriceira, os seus amigos e convidados, para desfrutarem do baile abrilhantado pela banda local Da Rat, pelo Rancho Folclórico da própria Sociedade e pelo Bruno do talho, que além de cantar no rancho, ainda toca órgão em casamentos, baptizados e arraiais em geral.
Convém também à autora desta epopeia informar o leitor mais incauto que nunca esta festa teve um desfecho assim... pacífico...
E esta era outra que tal.
Percebeu-se logo, à sua segunda mini, que a noite ia ser de estalo para R.J., o Fanhoso, que cochicha alguma coisa com o Bruno e logo ali arrecada do bolso um papel, enquanto o companheiro se dirige ao órgão.
Então, ao som do “My heart will go on”, de Céline Dion, interpretado livremente pelo Bruno do talho, R.J., o Fanhoso coloca-se vacilantemente em cima da cadeira e entoa a sua obra: a “Ode à Maria Odete”.
“Anda cá dá-me uma beijoca”
Diz a Maria Odete em brasa
Esta mulher parece uma foca
Mas é só por causa da barba
O Sandokan trouxe os amigos,
Maria Odete ajeita o suspensório
Confia o bigode e olha para o ar
“Acho que vamos ter um casório!”
Vai direita para a cozinha
Com a cabeça na panqueca
“Se calhar ainda há tempo
Para jogar uma partida de sueca.”
Ai Maria Odete, minha granda maluca!
Mas que bela mão para a caldeirada!
Nesta terra não há mulher como tu!
É uma raça bem disfarçada...
Maria Odete, na cozinha, ainda com a testa inchada e o olho esquerdo na tonalidade Belenenses, concentrada na sua caldeirada, apanha uns laivos da dedicatória, o suficiente para o saco de 5 kg de pó laxante que tinha nas mãos cair em peso no tacho da caldeirada.
Uma distracção que não foi sentida por Maria Odete, mas que o foi, indubitavelmente, pelos infelizes que comeram daquele repasto, e que começaram, primeiro de modo discreto, depois de forma mais óbvia, a ocupar os lavabos do edifício.
Entre eles António Luís que, ao recolher-se ao wc de serviço provoca, sem dar por isso, a derrocada das grades empilhadas à balda e barrica-se a ele próprio.
Foi a pior altura, deve ter pensado, para descobrir que sofria de claustrofobia, mas estas coisas são como a diarreia, que nunca aparece nas melhores alturas, não se sabendo, é claro, qual é a melhor altura, mas como agora até há aquele medicamento, não é nada de muito preocupante.
Para sorte de António Luís, andava a rondá-lo a Débora, a transexual, mas como não podia alombar com as grades, que tinha arranjado as unhas nessa tarde, fez-lhe companhia a cantar o “My heart will go on”, que o Bruno continuava a tocar em transe, como se isto fosse o Titanic, e não o Baile da Sociedade Recreativa, onde havia o caos, as pessoas a correr para as casa de banho, os Bombeiros a chegar, o guarda Arnaldo semi-nu enrolado com a Giséla Sóráia debaixo da mesa, os Da Rat a um canto muito sorridentes debaixo de uma nuvem de fumo.
... ou não fosse este um Baile como os outros todos, na Sociedade Recreativa da Cadriceira...
Uma parte deste capítulo é dedicada ao Sérgio Lopes, o sacana que me caloirou quando fui para o liceu.
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