terça-feira, 26 de março de 2019

A Devoradora de Corações - 3.


Arroz dos Anjos

Soror Maria dos Anjos, antes Inês de Negrões, era tida no convento como louca, apesar dos seus inocentes 17 anos, e do facto de ser a única filha de pais abastados e de posição, que aí a depositaram com um dote elevadíssimo ao não conseguir vislumbrar um casamento proveitoso no seu futuro, prevendo, pelo contrário, que o seu bom nome junto das pessoas importantes ficasse irremediavelmente manchado, à conta dos evidentes sintomas que a filha exibia de uma qualquer enfermidade desconhecida ou, talvez, de uma negra possessão.
Pois para os seus pais extremosos, muitos tinham sido os anos de sofrimento causados pelas suas alucinações, as suas longas conversas com anjos ou santos ou todos juntos e ao mesmo tempo, até na mesa do jantar com as visitas importantíssimas para os negócios do papá, os jejuns obstinados e prolongados, nomeadamente nos mesmos jantares.
Grande tinha sido a sua angústia com a ignóbil ligação que a filha mantinha com gente de condição inferior, onde é que já se vira, privar com mendigos, tirar comida das despensas e armários da casa para levar a gente estranha, é certo, que habitavam casebres do tamanho das despensas, provavelmente, a ofertar-lhes agasalhos e meias, a passar longas horas naquilo que ela chamava de “conversas de consolo” em vez de conversas interessantes sobre casamentos e prendas e dotes com as filhas da mesma idade dos amigos do papá, a abrigar crianças maltrapilhas em casa, no seu quarto imaculado, com as suas roupas vindas de Paris e de Milão, e de chegar ao ponto de se desfazer dos casacos que trazia vestidos para dar a alguém que visse na rua e que precisasse mais, todas estas tormentas eram uma constante na vida destes desafortunados pais, que não viram mais nenhuma solução do que um convento de clausura num lugar bem distante para a filha, a dedicação e prosperidade nos negócios para o papá e a devoção aos sobrinhos interesseiros para a mamã.


Manjar Real

Para a Irmã Maria do Céu, o convento sabia a gemas de ovos com açúcar e miolo de amêndoas em palitos, estaladiços, com um toque subtil que dava realeza a uma sobremesa.
Claro que ter como ingrediente carne de galinha não deixava de ser estranho, quem sabe exótico, mas era uma peculiaridade única, nem todos os doces se podem gabar disso, e a Irmã Generosa era uma exímia artesã dessa iguaria, para ela, tão sedutora.
Nesse caso, apenas, seria aceite o sacrifício da pobre galinha. Mas era por um bem maior.
Era aceite também a introdução de mais um ingrediente, pó de gengibre, cuidadosamente guardado em segredo por Soror Imaculada, apenas nesta ocasião, uma vez que, aqui, era considerado pecado mortal a alteração de uma receita antiga. Apenas novas criações eram toleradas, mas nunca, nunca, o desrespeito a uma receita já de si perfeita.
Hoje era noite de servir esse doce, que seria comido em colheradas partilhadas de boca a boca, na sua cama, a altas horas da madrugada, por dois corpos exaustos de desejo e de prazer, e Soror Generosa já o tinha mandado entregar à sua cela, com todo o cuidado, por uma monja da sua confiança, a doce, silenciosa e sempre fiável Leonor, agora Piedade.
Há que ver, a Irmã Maria do Céu não estava no convento por vocação. Aliás, quase nenhuma delas estava. Mas este havia sido o esconderijo perfeito para a sua situação de concubina do rei. Quem iria suspeitar? Tinha ali todos os luxos e confortos que teria num palácio, mas sem o desconforto dos olhares e ditos maldosos, e sem as mesquinhices e ciúmes das outras damas que aspiravam à sua posição, já que, naquele lugar, nenhuma das suas companheiras tinha essa aspiração, além de que a defendiam como a uma delas. O que, para ela, era uma mudança agradável: a vantagem do segredo, a tranquilidade do anonimato, e o amor fraternal que as suas irmãs não tiveram para com ela, já que haviam também conspirado contra si.
Este tinha sido um dia de muitas preparações e cuidados: o banho demorado com a água perfumada de alfazema, com todos os prazeres a que se achava de direito tomar, o espalhar pela pele do bálsamo preparado pela Irmã Imaculada, que prolongava esta lenta e doce sensação, o arranjar minucioso dos atavios e dos cabelos, enfeitados com pequenas rosas, pouco mais que botões, a disposição das cortinas e de suaves véus indianos pela sua cela, os incensos a perfumar o ambiente, em conjunto com as delicadas camélias que haviam sido colocadas em consolas e mesinhas de apoio.
Todas estas preparações em honra dele, apenas dele: o seu rei, o seu amo, o seu mestre, o seu escravo, o seu amor mais profundo.
Soror Maria do Céu conhecia o ritual. E conhecia a decepção de não vir ninguém, o eco nos corredores ser de silêncio, e de essa ausência lhe deixar um imenso buraco no peito.
Primeiro, a entrada secreta no convento, pelo lusco fusco, a sua hora preferida, em que não era dia nem noite, em que ela era mulher e santa, mortal e deusa, o som dos passos apressados, ansiosos, pelas pedras escurecidas dos corredores, o bater do seu coração a acompanhar o ruído dos passos, cada vez mais acelerado, depois, silêncio, mas só por dois segundos, a ânsia antes da emoção, o virar da maçaneta da porta da sua cela, um ligeiro guinchar de molas, o pousar de uma pétala de camélia que se desfizera do ramo, um clique suave ao fechar a porta; a seguir, o perfume dele a chegar junto de si, antes mesmo da sua própria presença, aquele aroma único a ervas e a suor e a vento e a liberdade, saberia reconhecer esse aroma em qualquer lugar, uns dedos a aparecer gentilmente por onde as cortinas se uniam, a afastá-las com delicadeza, com carinho, com temor, olhos negros de falcão a espreitar de seguida, e aí também toda ela se arqueava de tensão, todo o seu coração se abria de paixão, as suas pernas se abriam de desejo e humidade, e a sua boca se abria e a voz não era a dela, era a da criatura que a possuía nesse momento e expirava roucamente “vem, vem, meu senhor!”




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