quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Aquilo que te espreita da floresta. 1 - Prólogo. Um almoço em frente ao mar e uma tempestade a adivinhar-se.

O mar estava revolto, apesar dos últimos dias terem sido tranquilos.

O céu, que ainda ontem exibia um nítido tom de azul, estava hoje sombrio e ameaçador.

O vento levantava-se agora de forma súbita, quase lhe levara o chapéu.

Quem diria que ainda ontem se sentia o Verão, havia pessoas na praia, a esplanada estava cheia, e hoje Outubro mostrava definitivamente a sua cara e não se via vivalma.

Se calhar porque era segunda-feira de um vulgar mês de Outubro, e as pessoas estavam atarefadas nos seus empregos, e não sentadas numa esplanada à beira de uma praia que era composta. basicamente, por rochas e mar bravo.

Como ele.

Não se podia dizer que não trabalhava, é claro.

Mas hoje - e nas próximas duas semanas - decidira-se a tirar uma folga.

Escolhera pessimamente o dia.

Ou não.

Afinal, até era do seu agrado a paisagem à sua frente.

Não podia ter escolhido dia melhor, pensou.

Talvez fosse melhor almoçar dentro do bar, porém.

Viu, à distância, no passadiço de madeira, que resistia ainda ao tempo e às condições atmosféricas agrestes típicas da zona, o vulto do seu tio e padrinho, com quem tinha combinado o encontro de hoje.

Este acenou-lhe, mostrando que o tinha visto.

Mas depressa fez uma pausa para observar o mar.

Provavelmente, a pensar no que o seu homónimo Afonso Henriques teria achado desta massa de água selvagem, como se isso fosse novidade para ele, que dedicara toda a sua vida ao estudo deste rei e que devia ser das pessoas que melhor conhecia o tema.

O professor Afonso Henriques despertou do seu devaneio imaginativo com um suspiro.

A realidade também lhe era agradável.

Vinha a este lugar aprazível almoçar com o seu sobrinho João, um hábito e sítio habitual entre eles, quer fosse para trocar ideias em relação a algo que lhes estivesse a bloquear o raciocínio no trabalho ou na vida pessoal ou, como hoje, para comparar o resultado de casos terminados, um e outro.

Afonso Henriques fora professor de História Medieval numa das universidades mais conceituadas e avançadas da capital, e investigador de História Medieval Portuguesa e, apesar de já se ter reformado, continuava ainda muito activo.

Uma das suas actividades preferidas era a investigação genealógica, já que tinha grande capacidade para descodificar os documentos, além de um instinto menos académico e mais espiritual do que desejava, para encontrar os ditos documentos.

Aliado a isto, tinha muita experiência a fazê-lo, e uma maior ainda motivação.

Habitualmente, fazia-o por curiosidade e prazer, para surpreender os amigos.

Ocasionalmente, era convidado para o fazer profissionalmente.

Fora esse o caso, desta vez.

Não decorrera com a tranquilidade expectável e, à distância de quase três meses, o transtorno de ter sido raptado já desanuviara, e Afonso via agora todo este processo como uma aventura divertida à brava, em que conhecera pessoas muito interessantes e em que vira com outros olhos - mais nítidos e apaixonados - as pessoas que já conhecia há muito tempo, como a menina Cecília, que antes o aquecia com infusões originais e mantas coloridas, mas que agora lhe aquecia também o coração, e os pés, à noite.

Era tudo isto que tinha hoje para contar ao sobrinho, mas receava que o almoço só daria para um resumo bem espremido.

Sim, é provável.

O melhor seria deixar a história completa para um serão lá em casa: uma refeição acolhedora, boa companhia, a salamandra acesa, mantas no sofá, um chá na mesinha de apoio e um gato no colo.

Juntou-se a João na esplanada.

Abraçaram-se.

Já não se viam há mais de um mês.

Apoiaram-se os dois na balaustrada da esplanada, a ver e a ouvir o mar durante mais alguns minutos.

Não eram precisas palavras entre ambos.

Entraram no bar. Estava vazio, hoje. O único funcionário, o do costume, Nuno de seu nome, era a pessoa mais carrancuda, anti-social e monocórdica à frente de um balcão de café.

Era perfeito, e o preferido deles, mesmo assim.

Acenou com a cabeça à sua entrada, compreendendo que iam sair dois pratos do dia para a mesa da janela alta.

A televisão estava sem som, num canal de música clássica. Nada de movimentos súbitos e cores vibrantes, apenas um jovem bonito de fraque a tocar violoncelo.

A rádio passava uma estação de clássicos, o que queria dizer músicas dos anos 90, perfeitamente conhecidas pelo funcionário e por João, mas já não tanto por Afonso, não porque não ouvisse música dessa época, mas porque o seu gosto musical se prendia antes com bandas nórdicas com elementos cabeludos vestidos de preto, vozes gruturais, uma voz de soprano feminina e uns solos de guitarra harmoniosos. E, nesse aspecto, gostava de se manter actualizado, se bem que sempre fiel aos seus velhos conhecidos.

Bem, enfim, Afonso sabia da existência dos Pearl Jam, é claro, mas gostava mais da característica que partilhava com o Eddie Vedder, que era apreciar bons vinhos.

O café era construído em madeira, já a precisar de um pouco de verniz em alguns lugares, e a decoração também era toda em madeira: em vez de prateleiras, viam-se caixas de vinho, de fruta e velhas gavetas colocadas nas paredes, com livros, flores, fotografias e pinturas de clientes, as mesas e as cadeiras eram desirmanadas, encaixadas de forma criativa, subtraídas das casas das avós e tias diversas dos proprietários - eram três -, algumas pintadas de forma amadora, o que lhes dava um ar artístico e ao sítio uma aparência muito acolhedora.

Um velho gato cor de laranja dormia tranquilo numa estrutura feita exclusivamente para ele, com caixas de fruta, sobras de madeira, pedaços de ramos de árvores, sisal e uma sweatshirt desactivada, que fora colocada junto à janela.

As ditas avós e tias também vinham, com frequência, ao bar, perfeitamente conscientes de que se estavam a sentar nas suas anteriores cadeiras, mas lançando olhares orgulhosos aos seus descendentes.

Além das cadeiras, mesas e aquele louceiro de 1880 que agora exibia um fulgurante tom de vermelho carro de bombeiro, com chávenas de todos os tipos e feitios lá dentro, também partilhavam as receitas, e era por isso que agora lhes era servida a única opção de prato do dia de segunda-feira, que era a lasanha de espinafres e ricota, o principal motivo da escolha do lugar no dia de hoje.

A tarde iria fazer-se longa, pelo que decidiram pedir, para os dois, uma garrafa de D. João V de rótulo azul escuro, da adega cooperativa local.

João já não pensava no último caso em que trabalhara, fácil de desembaraçar, resolvido à sua satisfação e arrumado na sua prateleira de casos resolvidos.

Não, o que estava a ocupar a sua mente era o pedido que recebera hoje de manhã, uma estranha mensagem no telemóvel que lhe pedia que abrisse o mail com urgência.

Tinha tirado estas duas semanas para pousar os pensamentos e organizar a sua vida pessoal.

A casa estava de pantanas, tinha papéis por tudo o lado, os livros acumularam-se em cima de uma mesa da sala, que devia ser de refeições, caso tivesse a audácia de convidar alguém a este tumulto, já não olhava para eles há meses, e via no fundo da pilha os que trouxera da feira do livro - são sempre tantas promoções - com toda a intenção de ler.

O mesmo se podia dizer do armário da roupa e da cadeira do quarto, e da cozinha, onde copos de vinho se iam juntando a chávenas de café e canecas de chá.

Suspirou, frustrado. Derrotado.

Tinha mesmo de resolver este problema.

O último trabalho tinha sido tão simples e, mesmo assim, deixara-se afundar nele, esquecera que o resto do mundo existia.

Sim, tinha de o fazer. Uma divisão por dia. Parecia-lhe bem.

Desde que não se distraísse a folhear os livros e a organizar os papéis todos por tema e por data.

Pelos deuses, já sabia que isto não ia resultar!

Tinha mesmo de chamar ajuda profissional!

Sim, era isso mesmo!

Era o que ia fazer!

Hoje ainda!

Suspirou de alívio, e tragou o resto do vinho do copo, enchendo-o e ao do tio mais uma vez.

Já se sentia mais leve.

Um problema estava resolvido.

Estava satisfeito com a solução. Afinal, ele era bom a encontrar soluções.

A lasanha estava divinal. A quantidade certa de queijo. O que queria dizer imenso, claro! O molho de tomate mais saboroso e cremoso que alguma vez provara, feito com tomates bem maduros e com umas pitadas de orégãos na mistura. E os espinafres frescos, que ele sabia virem da horta dos proprietários.

No entanto, ainda cabia uma fatia do cheesecake basco que vira na vitrine de exposição.

Olhou para o tio.

Partilhavam o mesmo pensamento.

Café e cheesecake.

E depois uma caminhada pelo passadiço, e até à praia.

O telemóvel vibrou com uma mensagem.

“Preciso de uma resposta em breve.”

Sim, João sabia.

Também já sabia qual a resposta. Tinha dificuldade em resistir a um desafio.

E este caso era, definitivamente, um desafio irresistível. Uma aventura.

Na verdade, todos eram.

Mas havia algo neste que o atraía.

Agora, vamos ser realistas. Podia estar a ser enganado. era demasiado aliciante. Havia qualquer coisa que não soava bem.

Talvez o tio tivesse uma perspectiva sobre isso.

É essa a conversa que desenvolvem na caminhada.

Será seguro aceitar?

E porque não?

O pedido por email era claro.

Algo se estava a passar em Montalegre nestes últimos dias. Algo de estranho e incomum. Mais do que o habitual, enfim.

Era perfeitamente normal a imaginação andar mais solta num lugar tão fora do tempo e do espaço como Montalegre.

João nunca lá tinha estado, mas amigos seus sim.

Um lugar um pouco excêntrico em algumas ocasiões, mas perfeitamente tranquilo nos restantes dias do ano.

A próxima sexta-feira era dia 13, e queriam que ele estivesse lá para ver que eventos estranhos - não o festival habitual do dia - se davam ultimamente.

E por eventos estranhos descreviam vultos e sombras a passar, alterações súbitas de temperatura, ventos ainda mais súbitos, uivos e guinchos a altas horas da noite, vindos da floresta.

Perfeitamente assustador.

Para quem acreditasse nessas coisas, o que não era o caso de João, que conseguia manter a sua habitual frieza perante sintomas tão adversos.

Afonso ouviu enquanto fixava uma rocha particularmente grotesca, na praia lá em baixo. Não perdeu uma palavra do que o que o sobrinho disse.

Virou-se calmamente para ele, com um brilho nos olhos e um meio sorriso a espreitar do seu rosto.

Sim, ele aceitaria o desafio sem pensar muito.

Aliás, provavelmente, na sua mente, estava já a preparar a mala e os livros que ia levar.

João sorriu de volta.

Eram muito parecidos.

Até o seu percurso profissional era semelhante.

João estudara História Medieval, como o tio, quem sabe porque sempre admirara aquele tio solitário, de ar sério, mas tão corajoso e aventureiro debaixo de uma embalagem perfeitamente correcta, mas não tinha a mesma obsessão por D. Afonso Henriques.

A sua pancada era a Ordem de Cister em Portugal, e tinha orgulho em ter estado já em todos os mosteiros da ordem no nosso território.

Aliás, conhecia mais mosteiros do que castelos, e do que casas de amigos.

Isto acontecera principalmente porque, numa ocasião em que acompanhara o tio ao Mosteiro de Arouca, ainda adolescente, se apaixonara perdidamente por uma estátua da infanta-rainha D. Mafalda Sanches e quisera saber tudo sobre ela, mas disso ninguém precisava de estar a par, e nem o tio se tinha ainda apercebido disso, apesar de João ter uma foto da dita imagem na sua sala, em frente à sua secretária de trabalho.

Trabalhava agora na mesma universidade, mas não tinha aulas designadas para este semestre, estava com a investigação enquanto um colega melhorava as suas capacidades lectivas, e João dava apoio a este e aos alunos dos mestrados e dos doutoramentos, com as suas pesquisas.

O que queria dizer que se podia mais facilmente distrair com outros temas, como o do trabalho anterior, em que se deslocara a um sítio arqueológico perto de Estremoz para decifrar outros eventos estranhos na altura do equinócio - que foram explicados na mais perfeita lógica - ou no início do Verão, em que o atraíram a Sortelha por motivos semelhantes e que o fizeram ganhar um novo lugar preferido e a amizade dos gatos locais.

Tinha 54 anos, idade para ter juízo, é certo, mas também idade para ter uma juventude bastante curtida e agradavelmente independente, o que fizera com que fosse uma pessoa desenrascada desde cedo e tivesse grande prazer na sua própria companhia, se bem que também gostasse de conviver.

Com as pessoas certas, é claro.

Era, ainda, alto e magro, usava roupa discreta e tinha preferência por sapatilhas all star pretas e brancas e por um chapéu preto oferecido pela mãe há uns anos, depois de ver um dos rapazes da sua banda preferida com um, e de ter achado que, como ficava bem a um rapaz alto e magro, também havia de lhe ficar bem a ele.

Tinha razão, é claro, e João ganhou estima ao chapéu, quase nunca se separando dele.

Felizmente, também ainda tinha o cabelo todo, liso e numa tonalidade castanha escura, quase preta, que usava curto, mas já começara a ganhar uma madeixa branca no lado esquerdo.

Se tivesse a genética paterna, daqui a alguns anos teria o cabelo completamente branco, mas era mil vezes preferível à genética materna, em que a estética era mais ao estilo Santo António, apesar de João sempre ter adorado o seu avô Chico.

O vento levantou e parecia não ter vontade de se ir embora tão cedo.

Definitivamente, o Verão acabara, e o outono decidira aparecer em grande estilo, obrigando toda a gente a entrar em casa para se abrigar.

João e Afonso dirigiram-se aos seus carros, no parque de estacionamento acima da praia.

Despediram-se combinando novo encontro para daí a duas semanas, com a promessa, de um e de outro lado, de trazer novidades, e entraram nos respectivos carros enquanto o primeiro raio cruzava o céu.




terça-feira, 14 de outubro de 2025

O Jardim da Dona Leninha.

 

Dona Leninha adorava cozinhar.

Não, não era verdade.

Dona Leninha detestava cozinhar.

A pessoa que adorava cozinhar estava no passado, tinha sido uma Leninha risonha, cheia de energia luminosa, inspirada, corajosa.

Todos os seus pratos traziam risos e alegria.

Mas essa Leninha já não existia.

Algo no som dos risos lhe provocava agora apenas ruído, irritação.

Azia.

Como se a envenenassem.

Como se tivesse excedido a dose.

Pelo menos, desde que começara a trabalhar no escritório e tinha conhecido o seu namorado, depois marido, depois quase ex-marido enrolado com a secretária, se não tivesse entretanto ficado viúva.

Claro que quando a Menina Filomena passou de assistente de recepção sem qualificações mas com uma altura impressionante de pernas (apesar do também impressionante tamanho do nariz), para secretária pessoal disponível a qualquer hora, e o seu Jorge Miguel achou que “o lugar da sua mulher era na cozinha”, ele não tinha tido em conta, como ela, que os ramos da cicuta são muito parecidos com os do funcho, e cá estamos.

A empresa ficou para o sócio.

A secretária também.

Infelizmente, sofreram um pequeno azar intestinal no fim de semana que foram ao estrangeiro a um congresso.

Felizmente, a mulher dele tinha ficado em outro hotel, por lapso da secretária na marcação das viagens, e não sofreu o mesmo azar, passando até um fim de semana descontraído com piscina, spa e massagista musculoso.

Dona Leninha regressara ao seu posto, depois de uns dias a carpir a viuvez, pobrezinha, tão novinha, pouco mais de 20 anos, um casamento tão curto, onde arquivava papéis por ordem cronológica e alfabética.

Mas as coisas não voltaram a ser as mesmas, agora que voltara a estar sozinha.

Ao final do dia, fazia a pé o pequeno percurso que a levava de volta à sua casa.

Era uma casa antiga, cheia de recantos, com escadas estreitas de madeira e uma cozinha diminuta que dava para um pátio enorme. A casa que pertencera aos sogros e que herdara do seu pobre Jorge Miguel, coitado, que se ficara na cadeira do escritório numa noite em que tivera de trabalhar até mais tarde.

Leninha entrava em casa, obscurecida pelas árvores ainda frondosas que a rodeavam, ia até ao quintal, sentava-se junto às suas plantas, que desde essa altura dominavam o espaço e continuava silenciosa durante alguns minutos, a pensar no seu dia.

O sol já não estava tão forte, mas a sua luz era reconfortante.

Dois gatos da vizinhança aproximaram-se. Deu-lhes uma festa, já eram habitués do quintal e também apreciavam esta tranquilidade de final de dia. A gata tartaruga espreguiçou-se e o gato da papuça branca abriu a boca até ao infinito. Depois, meteram-se os dois no meio das alteias, atrás de uma lagartixa que também aqui viera apanhar sol.

Na verdade, nem um ano tinha passado desde que Jorge Miguel entrara na sua vida, mas esta tinha dado uma reviravolta inesperada.

Antes, era a alegria do escritório, levava os bolos para partilhar, todos a recebiam bem, e até era convidada para os ajuntamentos no café em frente, depois do horário de saída.

Fora assim que o seu Jorge Miguel a cortejara.

Depois, já não a convidavam tanto, mas não se importava. Nem quando o seu Jorge Miguel os acompanhava.

Continuava a ser bem recebida, no entanto, ela e a variedade de bolos e biscoitos que deixava na copa, que ela tinha o cuidado de adequar à época e às particularidades gastronómicas dos colegas, até a Dona Carlota, que tinha mesmo muitas particularidades, um palato exigente, reclamava de todos os bolinhos apesar de os experimentar todos, até ao dia em que adormeceu em cima do computador, teve de ir ao hospital fazer exames e não foi autorizada a voltar à empresa.

Um dia, os seus almoços começaram também a desaparecer.

Os almoços simples que fazia muito cedo na sua cozinha, quando ainda só se ouvia a brisa e os passarinhos que acordavam.

Não tinham nada de especial, não eram nada de exuberante, e eram na pequena quantidade de que ela precisava para se sentir satisfeita.

Não havia motivo para desaparecer uma coisa tão pequena, tão discreta, comida simples com as ervas do seu quintal.

Dona Leninha deixou então de levar a comida para o escritório.

As suas coisas continuavam a desaparecer sem ela se dar conta, e ela não conseguia perceber como.

No último dia, tinha sido o seu preferido, os canelones de espinafres e ricota. A salada com coentros e orégãos e o azeite trufado que fizera no início do Verão, quando ficara as duas semanas de férias sozinha em casa porque o Jorge Miguel afinal tivera de viajar a trabalho para a sucursal do Algarve.

Mas hoje não.

Hoje trouxera dois tabuleiros para partilhar.

Que alegria naquele escritório!
Havia imensa comida.

E bolo de morango e natas batidas para sobremesa!

Foi quando começaram a cair com a cara em cima do chantilly que se aperceberam que estava tudo envenenado com uma dose mortal de beladona.


quinta-feira, 2 de outubro de 2025

O primeiro dia.

Catarina saiu pela porta da sua nova casa, no limite da aldeia, e dirigiu-se para a floresta pelo caminho antigo, que partia daí.
Não tinha medo da floresta, nem das pedras grandes que assobiavam, nem da escuridão que chegava antes do dia terminar, dos lobos que podiam aparecer a qualquer um e nem de sabe-se lá que criaturas que uivavam de noite e se escondiam nas sombras.
O medo acabara.
A partir de hoje, já não sentia medo.
O seu medo morrera e ficara para trás.
O gato preto que aparecera no muro hoje de manhã, a manhã do seu casamento, seguira-a o dia todo.
Espreguiçara-se enquanto vestia o vestido branco e penteava o cabelo, enfeitando-o com as pequenas rosas pálidas do arbusto do quintal da vizinha do lado, que as trouxera num cesto, acabadas de apanhar.
Seguira-a pelo quintal enquanto fechava a porta e confirmava se as janelas estavam fechadas.
Acompanhara-a e à vizinha os poucos passos que a levavam até à igreja, e depois mais uns quantos enquanto o pai a acompanhava até ao altar, com o sorriso de um bom negócio acabado de concretizar no rosto.
Sentara-se ao lado dela enquanto o noivo a recebia como legítima, não tanto para amar e cuidar, mas mais para possuir e ser obedecido, com um sorriso semelhante ao do pai.
Catarina não tinha tido paz na sua casa.
O pai agredia-a com violência, e depois os irmãos repetiam o comportamento.
O vestido de mangas compridas e decote discreto escondia as marcas que recebera nos braços e nas costas ainda há uns dias.
A sua mãe morrera num dia de chuva, às mãos do pai.
Catarina era uma bebé de três anos que sentira o seu peso em cima quando isso acontecera, porque a criança ao colo não tivera o poder de a proteger do monstro atrás dos olhos do marido.
Era a sua primeira memória.
E agora o marido, no dia do casamento, continuava a tradição de família.
Agora que se recolhiam ao seu novo lar e recebiam a família para jantar, o marido decidira que a carne não estava cozinhada ao seu gosto, e decidira que ela merecia ser castigada por isso.
O pai e o irmão aprovavam.
Catarina só se tinha a ela.
A floresta e a solidão pareciam-lhe menos temerosa do que a vida que lhe era prometida naquela casa bonita e arranjada, com o doce sonho de flores coloridas no parapeito e nos canteiros do jardim.
O gato preto continuava a seu lado.
Agora bocejava, e a seguir avançava para o caminho, virando-se para trás e soltando um miado, como que a chamá-la para a escuridão.
Catarina olhou novamente a casa, a ribeira a cantarolar inocente com o sol a esconder-se atrás, na serra, as folhas das árvores a agitar com a leve brisa que se levantara. 
A faca escorria sangue, manchando-lhe o vestido branco, e os corpos jaziam atrás de si quando se voltou, a porta da casa aberta a deixar espreitar a pequena cozinha que não veria mais.

Aquilo que te espreita da floresta. 1 - Prólogo. Um almoço em frente ao mar e uma tempestade a adivinhar-se.

O mar estava revolto, apesar dos últimos dias terem sido tranquilos. O céu, que ainda ontem exibia um nítido tom de azul, estava hoje sombri...