Sintra, Novembro de 1827.
O vulto do jovem homem de cabelo loiro passou de novo, rapidamente.
Desta vez, quase o conseguiu ver pelo canto do olho.
Sorriu.
Ele prometera isso, na verdade.
Apagou a vela em cima da sua mesa de trabalho, levantou-se, e aproximou-se serenamente da janela quase escura, deixando a sala iluminada apenas pelos restos das brasas na lareira que se extinguia.
Talvez, assim, ele se aproximasse.
Talvez perdesse a timidez.
William não sentia medo do espectro. Não tinha medo de nenhum, e este, particularmente, trazia-lhe recordações doces e longínquas, se bem que demasiado fugazes para o seu desejo.
Para o desejo de ambos.
William sempre acreditara que uma vida inteira nunca seria suficiente para extinguir o calor que existira entre eles. Nem duas, sequer.
E tinham tido direito a apenas alguns escassos meses.
O vulto do rapaz loiro escondia-se agora atrás de um grosso cortinado de veludo, as madeixas iluminadas por um ténue raio de luar vindo do exterior, num fim de dia que se carregava de nevoeiro, o olhar com brilho próprio, apesar da sua consistência algo etérea.
Como ele conhecia aquele doce brilho!
Quantas vezes passara os dedos pelas sobrancelhas macias, as pálpebras claras. Tão fundo mergulhara no verde intenso do seu olhar.
O mesmo verde do paraíso onde se tinham encontrado, há muito tempo atrás, e que mal reconhecia agora, olhando pela janela, como se esse mundo fosse numa outra dimensão.
O passado, o Verão, o sol, a floresta vibrante; o presente, o escuro outono, a penumbra, as árvores gigantescas e assustadoras com os seus ramos como braços com garras nas pontas, sedentos de almas perdidas.
Estava a ficar velho, pensava, suspirando, a vislumbrar espectros a flutuar pelos lugares onde ele vagueava agora, em solidão, perdido em recordações, em momentos que existiam apenas nas sua memória e na de mais ninguém vivo, em coisas que não poderiam nunca mais voltar, ou ser vividas por outras pessoas.
Passou as mãos pelos olhos e inspirou mais fundo.
Expirou devagar.
Talvez isso fizesse com que a sua mente voltasse a ficar leve e sã.
Espreitou pelo canto do olho.
Não.
A sombra atrás do cortinado mantinha-se no mesmo sítio.
Agora, com um sorriso atrevido, que mal se adivinhava, provocava-o.
Soltou uma gargalhada amarga.
A sua imaginação era muito boa a pregar-lhe partidas!
Exactamente o mesmo trejeito rebelde que ele tinha!
E eis que desaparecera de novo, deixando no ar um fugaz aroma a pão acabado de sair do forno e de pele suada pelas lides da juventude, que tão bem conhecia.
Se fechasse os olhos, conseguia voltar àquele fim de Verão em que entrara, pela primeira vez, naquele paraíso verde e fresco, depois de dias incómodos de pó e suor numa viagem interminável, e em que se cruzara com o rapaz que o olhava como se só existissem os dois no mundo.
Oh, como se sentira perdido do tempo e do espaço naquele reino de árvores gigantescas, de pedras que podiam esconder segredos, e nevoeiro no pico da serra em alturas imprevistas, com o sussurrar do vento pelas folhas e o marulhar do mar lá ao longe, que se conseguia ouvir na escuridão da noite.
Como se apaixonara ardentemente pelas ruelas sem fim, perdido em pensamentos e sensações, a aperceber-se da névoa cada vez mais densa a cada dia, as árvores a mudar a tonalidade, a sua alma a ficar mais presa ao lugar e ao rapaz com que se cruzava todos os dias, se tivesse coragem de passar pela pequena padaria num canto estreito no centro da vila.
Sentia ainda hoje na pele o primeiro toque que trocaram quando se cruzaram num caminho solitário no meio do nada, numa outra dimensão, num outro mundo, numa outra época sem tempo, uma troca de electricidade estática ao mesmo tempo que o céu estalava acima deles num cenário que se tornara escuro.
O primeiro raspar ténue dos lábios ao mesmo tempo que a chuva os atingia, e a tempestade a desabar em cheio já no seu abraço sôfrego.
Deuses, como correram rápidos aqueles dias!
Como foram lentos e lhe marcaram o ser até aos dias de hoje!
Como desejava que esses dias nunca tivesse terminado, que não tivesse sido obrigado a sair daquele lugar perdido no tempo e no espaço.
Quem sabe se tudo não se mantivesse intacto ainda, quem sabe se não teria saído por um portal para a vida cá fora, e aquele lugar mantivesse imutáveis aqueles momentos.
A lareira ficou finalmente escura, deixou de crepitar, e a sala tornou-se demasiado lúgubre, mesmo para ele, que se considerava uma alma negra.
Estivera perdido no reino mágico onde vivera os melhores momentos da sua vida, um lugar que percebera imediatamente não fazer parte deste mundo de vícios, frustrações e maldade assim que pusera os pés dentro dele.
Dava-se agora conta que, durante todo o resto da sua vida, tentara reviver esses momentos, recriá-los.
Procurara por eles em vários lugares.
Procurara por ele dentro de várias pessoas.
Homens, mulheres, novos, velhos, claros ou escuros ou um meio termo.
Muitas pessoas.
Demasiadas.
Sempre em busca daquela forma de olhar, daquele modo de sorrir, da expressão daquela alma.
Mas não o tinha conseguido alcançar jamais.
Suspirou.
Pensara voltar tantas vezes.
E desistira outras tantas mais.
Mas algo no seu peito ansiara por esta dimensão, algo que não o deixara raciocinar sequer, e que o tinha feito meter-se a caminho sem pensar se estava preparado, se era conveniente, se era justo.
O espectro escondera-se por esta noite.
Seria inútil esperar um sinal que fosse.
Apesar disso, William sentia-se a flutuar até junto dele, no meio da imensidão de árvores daquela estrada estreita, a sentir a chuva nos ombros, a ensopar-lhe os cabelos e a roupa, a arrepiar-lhe a pele, não sabia se o frio da água, se a névoa em redor ou se da proximidade do rapaz do seu sonho.
William olhou sem ver o jardim à sua frente.
Não estava perfeito.
E nem o castelo.
A sua obra final, um castelo de fantasias lúgubres, cujo maior mérito era aparecer subitamente a seguir a uma curva, no meio de árvores densas, aos viajantes perdidos.
A sua janela estava numa óptima posição para poder testemunhar o temor nas suas faces.
Imaginava se alguma vez o iria considerar completo.
Não. Claro que não.
Faltava algo na penumbra.
Faltava a sua presença.
Sintra. Novamente. Finalmente. Desde sempre. Para sempre.
Novembro de 1842.
William sabia que regressar a este lugar fora o instinto certo.
No fundo do seu ser, sempre soubera que era aqui o sítio a que verdadeiramente pertencia, que nunca o havia deixado realmente.
Hoje, mesmo no cimo da serra, um nevoeiro denso cobria quase completamente o arvoredo mas, fixando os olhos, conseguia vislumbrar um palácio majestoso de cores vistosas, que tinha a certeza não existir ali neste tempo cronológico.
Piscou os olhos para aclarar a visão, e deixou de o ver de todo.
Agora, apenas o arvoredo denso e uma breve névoa em redor das ruínas de um velho convento.
Passados todos estes anos, a sua vida quase toda, e o caminho era o mesmo: o palácio antigo do rei, com as chaminés que o destacavam na paisagem e os azulejos mais belos que alguma vez vira, as ruelas de calçada, casas altas e estreitas, as janelas com flores coloridas, os cheiros, por Deus! doces, fritos, refogados, carnes cheias de gordura e temperos, um desvario para os sentidos, e o pão. Sempre o pão.
O cheiro do pão da sua pele.
Mais além na estrada, as casas escasseavam e as árvores dominavam.
Deixava de ouvir os sons do mundo dos homens, mas não se conseguia aperceber se isso acontecia lenta ou subitamente. Apenas que já não os escutava.
Os seus passos tornaram-se mais lentos. Conhecia de cor esta parte do caminho. Conseguia fazê-la de olhos fechados.
Estes últimos anos que aqui estivera, repetira todos os dias o mesmo percurso.
Agora, reparava, o céu começara a cobrir-se de nuvens e ameaçava chuva. A penumbra aproximara-se e ficara presa nas colinas.
Acontecera de repente, como naquele dia da sua juventude.
O seu coração começou a bater mais depressa.
Reconhecia aquele lugar e aquele tempo e aquele momento.
Quem sabe, sem se dar conta, William tivesse entrado novamente no portal que achava não passar da sua imaginação.
Tinha-o buscado durante tanto tempo!
Estava cansado.
Tão cansado.
Um pouco mais à frente, via umas escadas de uma casa que já não era habitada. Poderia sentar-se um pouco.
William sabia o que vinha a seguir. Tinha sido paciente durante tanto tempo. Não teria de esperar muito mais.
As nuvens tornaram-se mais carregadas, a escuridão começou a tomar conta do que o rodeava mas, finalmente, conseguia vê-lo surgir agora nitidamente, a dirigir-se ao seu encontro no caminho, trazendo luz e uma brisa quente.
Não mudara nada, estes anos todos.
Enquanto William não passava agora de um velho que mal se conseguia manter nas pernas, Théo não parecia passar dos 16 anos que tinha há 70 anos atrás.
À medida que Théo se aproximava dele, William deixava de ver a penumbra, e só enxergava a luz que o rodeava, as árvores estranhamente verdes e frescas para um entardecer de Novembro.
Théo tocou-lhe a fronte com ternura, William soltou uma lágrima solitária e fechou os olhos, adormecendo para sempre.
Théo olhou em redor, acordando do sonho que tivera em pleno passeio.
Há já algum tempo que não voltava a este lugar, a este caminho.
Nunca se esquecera de William, e voltar ali fazia com que os momentos que passaram juntos tivessem ficado presos em algum lugar do tempo.
O seu castelo não passava agora de uma ruína cheia de musgo, hera e conchelos, a tornar-se cada vez mais o lar de seres misteriosos e ligeiramente assustadores que William desejara que fosse. Iria ficar orgulhoso de o ver agora.
Não lhe contara o seu segredo.
O que era.
Para William, Théo tinha sido um jovem que conhecera, por vezes um espectro escondendo-se atrás de uma cortina de veludo verde escuro, e depois um sonho que imaginara nos últimos minutos da sua vida.
Mas não para ele.
O seu corpo físico continuava a ser o de um jovem de 17 ou 18 anos, nem sabia bem, mas a sua alma corria os caminhos do mundo desde o alvor dos tempos.
Quando conheceu William, pensou que talvez o quisesse transformar no que era, mas nunca teve a coragem necessária. E o seu encontro fora tão breve!
E, pelos deuses, como se arrependia!
Agora seguia sozinho pelos séculos, com a clara e dolorosa certeza de que deixara desaparecer uma alma igual à sua.
Como poderia ter sido tudo tão diferente.
Os tempos mudavam, o palacete já não existia para os homens, mas Théo acreditava ver William ainda a espreitar pelo que restava da janela com a sua vista preferida.
Sorriu ao passar por umas escadas no caminho que tantas vezes percorrera.
Fora ali que se encontrara com William pela primeira vez, e fora ali que se despedira dele.
Pelo canto do olho, apercebeu-se de vultos no cimo da estrada, a surgir da curva que ali fazia. Por momentos, parecia-lhe vê-lo novamente, os seus olhos escuros e densos e longos cabelos negros.
Mas não, eram apenas uns jovens modernos, vestidos com roupas pretas e vermelhas e rendas brancas e longos casacos de cabedal, os cabelos compridos como se usava há alguns séculos atrás e olhos com sombras negras.
Théo habituara-se depressa a estes tempos rápidos e intensos de final de século XX. Passava perfeitamente despercebido, mesmo que o achassem um pouco excêntrico.
O que lhe parecera William sorriu-lhe, não tirando os olhos dele, como se só existissem os dois no mundo. Parecia ter uma luz em redor do seu rosto, algo de fim de Verão a flutuar em seu redor.
Théo sorriu-lhe de volta.
Sim, talvez se voltassem a encontrar.