domingo, 17 de novembro de 2024

O castelo na penumbra

Sintra, Novembro de 1827.


O vulto do jovem homem de cabelo loiro passou de novo, rapidamente.

Desta vez, quase o conseguiu ver pelo canto do olho.

Sorriu.

Ele prometera isso, na verdade.

Apagou a vela em cima da sua mesa de trabalho, levantou-se, e aproximou-se serenamente da janela quase escura, deixando a sala iluminada apenas pelos restos das brasas na lareira que se extinguia.

Talvez, assim, ele se aproximasse.

Talvez perdesse a timidez.

William não sentia medo do espectro. Não tinha medo de nenhum, e este, particularmente, trazia-lhe recordações doces e longínquas, se bem que demasiado fugazes para o seu desejo.

Para o desejo de ambos.

William sempre acreditara que uma vida inteira nunca seria suficiente para extinguir o calor que existira entre eles. Nem duas, sequer.

E tinham tido direito a apenas alguns escassos meses.

O vulto do rapaz loiro escondia-se agora atrás de um grosso cortinado de veludo, as madeixas iluminadas por um ténue raio de luar vindo do exterior, num fim de dia que se carregava de nevoeiro, o olhar com brilho próprio, apesar da sua consistência algo etérea.

Como ele conhecia aquele doce brilho!

Quantas vezes passara os dedos pelas sobrancelhas macias, as pálpebras claras. Tão fundo mergulhara no verde intenso do seu olhar.

O mesmo verde do paraíso onde se tinham encontrado, há muito tempo atrás, e que mal reconhecia agora, olhando pela janela, como se esse mundo fosse numa outra dimensão.

O passado, o Verão, o sol, a floresta vibrante; o presente, o escuro outono, a penumbra, as árvores gigantescas e assustadoras com os seus ramos como braços com garras nas pontas, sedentos de almas perdidas.

Estava a ficar velho, pensava, suspirando, a vislumbrar espectros a flutuar pelos lugares onde ele vagueava agora, em solidão, perdido em recordações, em momentos que existiam apenas nas sua memória e na de mais ninguém vivo, em coisas que não poderiam nunca mais voltar, ou ser vividas por outras pessoas.

Passou as mãos pelos olhos e inspirou mais fundo.

Expirou devagar.

Talvez isso fizesse com que a sua mente voltasse a ficar leve e sã.

Espreitou pelo canto do olho.

Não.

A sombra atrás do cortinado mantinha-se no mesmo sítio.

Agora, com um sorriso atrevido, que mal se adivinhava, provocava-o.

Soltou uma gargalhada amarga.

A sua imaginação era muito boa a pregar-lhe partidas!

Exactamente o mesmo trejeito rebelde que ele tinha!

E eis que desaparecera de novo, deixando no ar um fugaz aroma a pão acabado de sair do forno e de pele suada pelas lides da juventude, que tão bem conhecia.

Se fechasse os olhos, conseguia voltar àquele fim de Verão em que entrara, pela primeira vez, naquele paraíso verde e fresco, depois de dias incómodos de pó e suor numa viagem interminável, e em que se cruzara com o rapaz que o olhava como se só existissem os dois no mundo.

Oh, como se sentira perdido do tempo e do espaço naquele reino de árvores gigantescas, de pedras que podiam esconder segredos, e nevoeiro no pico da serra em alturas imprevistas, com o sussurrar do vento pelas folhas e o marulhar do mar lá ao longe, que se conseguia ouvir na escuridão da noite.

Como se apaixonara ardentemente pelas ruelas sem fim, perdido em pensamentos e sensações, a aperceber-se da névoa cada vez mais densa a cada dia, as árvores a mudar a tonalidade, a sua alma a ficar mais presa ao lugar e ao rapaz com que se cruzava todos os dias, se tivesse coragem de passar pela pequena padaria num canto estreito no centro da vila.

Sentia ainda hoje na pele o primeiro toque que trocaram quando se cruzaram num caminho solitário no meio do nada, numa outra dimensão, num outro mundo, numa outra época sem tempo, uma troca de electricidade estática ao mesmo tempo que o céu estalava acima deles num cenário que se tornara escuro.

O primeiro raspar ténue dos lábios ao mesmo tempo que a chuva os atingia, e a tempestade a desabar em cheio já no seu abraço sôfrego.

Deuses, como correram rápidos aqueles dias!

Como foram lentos e lhe marcaram o ser até aos dias de hoje!

Como desejava que esses dias nunca tivesse terminado, que não tivesse sido obrigado a sair daquele lugar perdido no tempo e no espaço.

Quem sabe se tudo não se mantivesse intacto ainda, quem sabe se não teria saído por um portal para a vida cá fora, e aquele lugar mantivesse imutáveis aqueles momentos.

A lareira ficou finalmente escura, deixou de crepitar, e a sala tornou-se demasiado lúgubre, mesmo para ele, que se considerava uma alma negra.

Estivera perdido no reino mágico onde vivera os melhores momentos da sua vida, um lugar que percebera imediatamente não fazer parte deste mundo de vícios, frustrações e maldade assim que pusera os pés dentro dele.

Dava-se agora conta que, durante todo o resto da sua vida, tentara reviver esses momentos, recriá-los.

Procurara por eles em vários lugares.

Procurara por ele dentro de várias pessoas.

Homens, mulheres, novos, velhos, claros ou escuros ou um meio termo.

Muitas pessoas.

Demasiadas.

Sempre em busca daquela forma de olhar, daquele modo de sorrir, da expressão daquela alma.

Mas não o tinha conseguido alcançar jamais.

Suspirou.

Pensara voltar tantas vezes.

E desistira outras tantas mais.

Mas algo no seu peito ansiara por esta dimensão, algo que não o deixara raciocinar sequer, e que o tinha feito meter-se a caminho sem pensar se estava preparado, se era conveniente, se era justo.

O espectro escondera-se por esta noite.

Seria inútil esperar um sinal que fosse.

Apesar disso, William sentia-se a flutuar até junto dele, no meio da imensidão de árvores daquela estrada estreita, a sentir a chuva nos ombros, a ensopar-lhe os cabelos e a roupa, a arrepiar-lhe a pele, não sabia se o frio da água, se a névoa em redor ou se da proximidade do rapaz do seu sonho.

William olhou sem ver o jardim à sua frente.

Não estava perfeito.

E nem o castelo.

A sua obra final, um castelo de fantasias lúgubres, cujo maior mérito era aparecer subitamente a seguir a uma curva, no meio de árvores densas, aos viajantes perdidos.

A sua janela estava numa óptima posição para poder testemunhar o temor nas suas faces.

Imaginava se alguma vez o iria considerar completo.

Não. Claro que não.

Faltava algo na penumbra.

Faltava a sua presença.



Sintra. Novamente. Finalmente. Desde sempre. Para sempre.

Novembro de 1842.

William sabia que regressar a este lugar fora o instinto certo.

No fundo do seu ser, sempre soubera que era aqui o sítio a que verdadeiramente pertencia, que nunca o havia deixado realmente.

Hoje, mesmo no cimo da serra, um nevoeiro denso cobria quase completamente o arvoredo mas, fixando os olhos, conseguia vislumbrar um palácio majestoso de cores vistosas, que tinha a certeza não existir ali neste tempo cronológico.

Piscou os olhos para aclarar a visão, e deixou de o ver de todo.

Agora, apenas o arvoredo denso e uma breve névoa em redor das ruínas de um velho convento.

Passados todos estes anos, a sua vida quase toda, e o caminho era o mesmo: o palácio antigo do rei, com as chaminés que o destacavam na paisagem e os azulejos mais belos que alguma vez vira, as ruelas de calçada, casas altas e estreitas, as janelas com flores coloridas, os cheiros, por Deus! doces, fritos, refogados, carnes cheias de gordura e temperos, um desvario para os sentidos, e o pão. Sempre o pão.

O cheiro do pão da sua pele.

Mais além na estrada, as casas escasseavam e as árvores dominavam.

Deixava de ouvir os sons do mundo dos homens, mas não se conseguia aperceber se isso acontecia lenta ou subitamente. Apenas que já não os escutava.

Os seus passos tornaram-se mais lentos. Conhecia de cor esta parte do caminho. Conseguia fazê-la de olhos fechados.

Estes últimos anos que aqui estivera, repetira todos os dias o mesmo percurso.

Agora, reparava, o céu começara a cobrir-se de nuvens e ameaçava chuva. A penumbra aproximara-se e ficara presa nas colinas.

Acontecera de repente, como naquele dia da sua juventude.

O seu coração começou a bater mais depressa.

Reconhecia aquele lugar e aquele tempo e aquele momento.

Quem sabe, sem se dar conta, William tivesse entrado novamente no portal que achava não passar da sua imaginação.

Tinha-o buscado durante tanto tempo!

Estava cansado.

Tão cansado.

Um pouco mais à frente, via umas escadas de uma casa que já não era habitada. Poderia sentar-se um pouco.

William sabia o que vinha a seguir. Tinha sido paciente durante tanto tempo. Não teria de esperar muito mais.

As nuvens tornaram-se mais carregadas, a escuridão começou a tomar conta do que o rodeava mas, finalmente, conseguia vê-lo surgir agora nitidamente, a dirigir-se ao seu encontro no caminho, trazendo luz e uma brisa quente.

Não mudara nada, estes anos todos.

Enquanto William não passava agora de um velho que mal se conseguia manter nas pernas, Théo não parecia passar dos 16 anos que tinha há 70 anos atrás.

À medida que Théo se aproximava dele, William deixava de ver a penumbra, e só enxergava a luz que o rodeava, as árvores estranhamente verdes e frescas para um entardecer de Novembro.

Théo tocou-lhe a fronte com ternura, William soltou uma lágrima solitária e fechou os olhos, adormecendo para sempre.



Théo olhou em redor, acordando do sonho que tivera em pleno passeio.

Há já algum tempo que não voltava a este lugar, a este caminho.

Nunca se esquecera de William, e voltar ali fazia com que os momentos que passaram juntos tivessem ficado presos em algum lugar do tempo.

O seu castelo não passava agora de uma ruína cheia de musgo, hera e conchelos, a tornar-se cada vez mais o lar de seres misteriosos e ligeiramente assustadores que William desejara que fosse. Iria ficar orgulhoso de o ver agora.

Não lhe contara o seu segredo.

O que era.

Para William, Théo tinha sido um jovem que conhecera, por vezes um espectro escondendo-se atrás de uma cortina de veludo verde escuro, e depois um sonho que imaginara nos últimos minutos da sua vida.

Mas não para ele.

O seu corpo físico continuava a ser o de um jovem de 17 ou 18 anos, nem sabia bem, mas a sua alma corria os caminhos do mundo desde o alvor dos tempos.

Quando conheceu William, pensou que talvez o quisesse transformar no que era, mas nunca teve a coragem necessária. E o seu encontro fora tão breve!

E, pelos deuses, como se arrependia!

Agora seguia sozinho pelos séculos, com a clara e dolorosa certeza de que deixara desaparecer uma alma igual à sua.

Como poderia ter sido tudo tão diferente.

Os tempos mudavam, o palacete já não existia para os homens, mas Théo acreditava ver William ainda a espreitar pelo que restava da janela com a sua vista preferida.

Sorriu ao passar por umas escadas no caminho que tantas vezes percorrera.

Fora ali que se encontrara com William pela primeira vez, e fora ali que se despedira dele.

Pelo canto do olho, apercebeu-se de vultos no cimo da estrada, a surgir da curva que ali fazia. Por momentos, parecia-lhe vê-lo novamente, os seus olhos escuros e densos e longos cabelos negros.

Mas não, eram apenas uns jovens modernos, vestidos com roupas pretas e vermelhas e rendas brancas e longos casacos de cabedal, os cabelos compridos como se usava há alguns séculos atrás e olhos com sombras negras.

Théo habituara-se depressa a estes tempos rápidos e intensos de final de século XX. Passava perfeitamente despercebido, mesmo que o achassem um pouco excêntrico.

O que lhe parecera William sorriu-lhe, não tirando os olhos dele, como se só existissem os dois no mundo. Parecia ter uma luz em redor do seu rosto, algo de fim de Verão a flutuar em seu redor.

Théo sorriu-lhe de volta.

Sim, talvez se voltassem a encontrar.




domingo, 10 de novembro de 2024

No fim da terra.

Novembro é um mês estranho para uma pessoa se meter à estrada.

Ontem, fiz meio Portugal de t-shirt e janelas do carro abertas.

Hoje, atravessei parte da Galiza debaixo de nuvens negras.

No fim da terra, junto ao mar, onde me encontro agora, o vento sopra como se nos quisesse arrancar pelos ares, arremetendo-nos depois contra as arribas como se tivesse prazer nisso (como o compreendo) e os ruídos lá longe, dentro das nuvens, fazem adivinhar a tempestade para breve.

Uma péssima altura para enterrar o corpo físico de uma alma má que teve um breve encontro com alguém que não lhe tolerou as ânsias.

Mas não teria capacidade para isso sozinha, por muita que fosse a vontade.

O meu plano era bem melhor.

Enfim, não é todos os dias que as pessoas com que me cruzo me irritam desta maneira, mas o Tó-Zé Pires, o meu vizinho do rés-do-chão, andava a pedi-las há anos, sim, e o limite foi quando veio à janela torcer alto e bom som pelo Manchester City,  que estava a jogar com uma equipa portuguesa, e chamar o que bem lhe apeteceu aos vizinhos aflitos. 

Também perderam o jogo, e o Tó-Zé ficou ali com o destino marcado.

Estão a ver, um tipo como o Tó-Zé não é difícil de eliminar.

Uma chatice à noite, à porta do café, depois de uma cerveja a mais, uma lâmpada apagada nas escadas para a cave… era fácil demais.

Mas eu queria sentir-lhe o gosto. 

E queria que ele soubesse.

Alguém como o Tó-Zé, que implica com os miúdos da rua, dá pontapés aos cães, atira pedras aos gatos, rosna palavrões entredentes às mulheres, e que se encolhe quando um homem se cruza com ele.

Ah, mas eu sabia. Eu via-o. E ouvia-o.

Não, este tinha de ser tratado mesmo com jeito.

A parte mais fácil era o como.

As plantas certas, transformadas no líquido certo, e infalivelmente mortal.

Algo que pudesse passar por um ataque cardíaco.

O Tó-Zé é estúpido. Bom, era, não é mais.

Se pudesse roubar um bolo do parapeito, roubava.

Observei quieta. Vi-o sentar-se no degrau da sua porta, o olhar a procurar em volta, desesperado, capturado, a embaciar. Acho que me viu. Acho que me viu sorrir, no final.

Em minutos, estava feito, e sem vestígios.

Depois foi só esperar a madrugada e metê-lo no banco traseiro do seu carro. Parecia dormir profundamente, e o cheiro intenso a cerveja dava um bom motivo para isso.

Usei o carro dele para fazer a viagem e os seus cartões para pagar o combustível, tendo o cuidado de usar luvas e de ter o cabelo bem apanhado.

Agora, o Tó-Zé parece dormir uma sesta ali em baixo, no mesmo sítio. O lugar está vazio. Ninguém sai de casa a esta hora, com o tempo assim.

Consigo arrastá-lo pelas rochas, a porta fica aberta com os documentos lá dentro, o rádio e os faróis ligados. Abro um pouco as calças, para parecer que teve de parar para uma emergência fisiológica.

A tempestade que se aproxima é perfeita para o seu desfecho, uma queda de um lugar ermo, até ao mar revolto.

O corpo aparecerá daqui a uns dias, algures numa praia, um pouco amassado.

Ninguém terá dúvidas.

E eu… a caminhada daqui para fora, pelo meio das árvores densas e debaixo da chuva forte não me assusta. Tenho treino para isto e estou preparada. Depois, uma peruca de outra cor, uns óculos e um casaco diferente. Uma viagem incógnita num combóio.

Regresso a casa e sento-me com os meus gatos a ler, como se não tivesse saído de casa no fim de semana.

Como se isto não tivesse acontecido.

Como se nunca o tivesse feito.

Afinal, nunca desconfiam da avózinha simpática de cabelos brancos que trabalha na biblioteca local.




terça-feira, 29 de outubro de 2024

Dia de Todos os Santos.

Sinto o gosto do sangue nos lábios. 

Perdi os sentidos, sinto a cabeça a latejar, um golpe aberto na testa.

Decido que é a última vez que Vicente me toca.

Que me toca desta maneira.

Não tenho forma de me defender, eu sei.

Uma mulher nunca se pode virar ao marido, ao pai, ao irmão, a qualquer homem.

Mas uma vez é sempre a última.

Uma vez é a que nos faz perder a capacidade de aceitar que a vida é assim e que se nos submetermos teremos a Vida Eterna, mesmo que a vida terrena tenha sido um Inferno.

Mas o Inferno não será pior que isto, e escolho o Inferno a esta vida.

Desço o caminho até junto das árvores.

O sol ainda mal se levantou.

Aqui quase se sente o silêncio.

As plantas estão silenciosas.

Algumas apenas belas.

Algumas insignificantes, parecem despojadas da atenção de Deus.

Outras… poderosamente mortíferas.

Terão sido estas também concebidas no seio de Deus?

E é tão fácil confundi-las com as ervas úteis.

Será um truque do Demónio?

Ou terá Deus um pouco de Demónio dentro dele?

Quem sabe, são a caridade de Deus para as mulheres desesperadas.

Não preciso de muito.

Podia usá-las para mim, e acabar com tudo.

Mas não tenho coragem para isso.

Quero tanto viver!

Mas sei que quero trocar a minha Vida Eterna por um pouco de paz na Terra.

Hoje será o dia da minha liberdade.

Hoje, no Dia de Todos os Santos, quando todos estiverem dentro das igrejas a mostrar como são dignos das suas bençãos quando, na verdade, as suas acções mostram que são servos do Demónio.

Hoje, todos se mostram santos para o seu deus.

Mas esquecem que ele vê as suas almas.

Esquecem que Deus castiga quando quer e como quer.

Mesmo os santos.

Mesmo neste dia em que os seus escravos lhe enchem os templos de súplicas e lamentos e rezas e mentiras.


Sinto o gosto do sangue dos lábios. Perdi os sentidos, mas não estou ferida, é apenas um corte. Terá sido o choque que me terá levado a falhar, mas vejo tudo em meu redor destruído.

Não resta uma parede do mísero casebre onde vivia.

Não sobra nem uma peça que se possa aproveitar da miséria que aqui estava dentro.

Olho à minha volta, ainda a tactear: sinto os braços, sinto as pernas, sinto dor apenas na face.

Oiço chamas a crepitar.

De onde vêm? Não as consigo ver, mas já as posso cheirar.

Madeira e roupa e tristeza e desgraça e carne.

Os gritos crescem de intensidade.

Ouço-os agora mais perto.

Consigo levantar-me, mas já não sinto a tigela que trazia na mão.

Onde levava o veneno que ia acabar com a minha miséria.

Ou talvez não.

Talvez me desse apenas um descanso da miséria, ou uma miséria mais leve.

Carregar o peso do pecado seria uma nova miséria.

Vejo-a finalmente no chão, a meus pés, o barro em mil pedaços, o líquido espalhado pelas traves de madeira, o seu poder inútil agora.

O chão ainda treme, as paredes ainda mexem.

Sinto que ainda não foi tudo.

O peso na alma diz-me que o pior está para vir.

Os olhos habituam-se ao lugar onde estou.

Vejo debaixo de pedras a mão de Vicente.

Inanimada.

Ainda escorre sangue pelo que resta do seu braço, do seu corpo.

Mesmo que estivesse vivo, não o conseguiria retirar de lá.

Mesmo que estivesse vivo, não quereria fazê-lo.

Penso se Deus o terá castigado, para me livrar a mim de ter de o fazer.

Penso se terei sido eu a provocar isto tudo com a intensidade do meu ódio por Vicente.

Creio que terá sido isso.

E sei que o pior virá, porque o ódio que sinto não passou ainda.

Mesmo depois do meu ódio ter feito com que as paredes lhe caíssem em cima, algo cá dentro deseja que queime tudo em seu redor.

Uma chama intensa, destruidora, que limpe a terra da sua presença, que faça esquecer que este homem existiu.

E, se isso não bastar, que venha uma onda e que leve tudo para o abismo.

No lugar onde estava a janela, um gato preto chama a minha atenção.

Provavelmente, desesperado e assustado como eu.

Mas ele sabe o caminho daqui para fora.

Para a rua, para a liberdade.

Para a fuga.

Passo por cima dos escombros, sigo o gato, seguro do seu caminho.

Por todo o lado vejo o mesmo.

Gritos, partes de corpos debaixo de traves e de entulho.

O cheiro a carnes queimadas.

O calor que se aproxima.

Será isto o Inferno?

Será que, afinal, morri?

Mas não, sinto-me mais viva do que nunca.

Um corvo grasna por cima de nós, voa na direcção do castelo.

É longe, mas acho que consigo.

O gato segue também pelo que resta da rua.

Os animais sabem melhor do que os Homens.

Corro na direcção contrária das pessoas, para longe do que resta da cidade.

Ali, nada me prende.

A cada passo, sinto-me mais leve, vejo mais longe, mais nitidamente, mas sinto os sons distantes.

Só oiço o vento nas árvores e o rio a protestar.

Cá em cima, longe das trevas, vejo o fogo a percorrer o que antes era vida e movimento.

Que luz tão brilhante.

Que luz tão intensa.

Que luz tão arrasadora.

Um vento forte faz-me desequilibrar, e lá em baixo a água movimenta-se, como uma parede enorme que irá tragar o que sobrar das chamas.

Tentei escapar do Inferno, mas creio que o meu desejo de morte o trouxe até mim.

Sinto agora culpa, e alívio, e desespero, e o poder de um deus.

Olhai, Senhor o meu pecado.

Olhai, Senhor, o meu castigo.




Semana já não sei quantas, não me perguntem, não sei de nada, não sei a quantas ando.


O castelo na penumbra

Sintra, Novembro de 1827. O vulto do jovem homem de cabelo loiro passou de novo, rapidamente. Desta vez, quase o conseguiu ver pelo canto do...