segunda-feira, 14 de outubro de 2024

A Voz no círculo na Floresta

Aqui, neste lugar onde me encontro, já seis mil anos se passaram sob os meus pés.

As águas do lago mantêm-se calmas, não denunciando que são eternidade.

As pedras brilharam ao sol, choraram à chuva, foram marcadas, algumas cobriram-se de musgo, e envelheceram.

As bolotas tornaram-se troncos frágeis, depois carvalhos vigorosos, enfrentaram o calor e as neves, morreram, uns mais cedo do que outros, e voltaram a nascer e a crescer.

A lua cresce, e diminui, e volta a crescer. O seu domínio é o meu. O meu domínio é o seu.

Aqui me mantenho, quase imutável, cada vez mais poderosa, desde o dia em que, enganada pelo poder da criatura que aqui vivia anteriormente, caí na sua armadilha e fiquei presa. Nada que me incomode muito. Gosto de estar aqui, do silêncio, da paisagem, de sentir que sou eu quem controla quase tudo em meu redor.

De vez em quando, passa por aqui um cavaleiro perdido. São tão fáceis de dominar e de fazer cair no lago, pela encosta das pedras que fica a coberto das nuvens e da vegetação. Gosto de ver o desespero do inevitável a espelhar-se na sua face quando percebem o momento em que à sua frente nada mais têm do que o infinito e a morte certa.

Algumas vezes, passam viajantes. Os seus cavalos apercebem-se de algo, afilam as orelhas e aceleram o passo, mas não me mostro e, para eles, os mortais, sou mais uma pedra alta na paisagem agreste.

Uma vez só, passou uma igual a mim.

Como fui há muito tempo.

Nunca tinha visto nenhuma dos deles aqui.

Este lugar é agora muito dentro da floresta para desejarem vir passear.

No entanto, algo a fez voltar. Não uma ou duas vezes, mas muitas, durante anos. Consegui acompanhar as suas transformações físicas. Cabelos claros que escureceram e alongaram, a figura a a ganhar forma, os gestos a suavizarem. Os mesmos olhos verdes a espreitarem sem revelar segredos.

Uma novidade interessante para mim, que durou muito pouco do meu tempo, porém.

Para mim, medir em anos é um inspirar e um expirar suaves, quando tenho toda a eternidade atrás de mim e à minha frente.

Algo a atraía, mas ela nunca soube o que eu era, e eu nunca me mostrei.

A mortal era fraca e indigna, não iria aguentar olhar o meu poder.

Ou talvez eu tivesse inveja da liberdade que tinha em conseguir sair deste lugar, em voltar para a civilização, do outro lado da colina, para o movimento e as casas e o mercado e os risos.

Na última vez que veio, um cavaleiro acompanhava-a.

Mantive-me mais quieta ainda, a observá-los atentamente. Nunca tinha visto mortais a interagir entre si, neste lugar. Os que passavam, vinham sozinhos, se falavam era com os animais que os acompanhavam.

Fiquei curiosa, e não me decepcionei. Eram mais interessantes do que os outros.

Julgando-se completamente a sós, sentiam-se mais livres, e vi-os a saltar nas pedras, a rir às gargalhadas, a tirar os sapatos e a brincar no lago.

Mas algo aconteceu que fez mudar o ambiente. Não sei se um olhar dele sob um raio do sol, ou se um levantar da saia dela um pouco mais acima da canela, até eu senti a estranha mudança no ar, no vento, na temperatura exterior.

Ele era um ser tão lindo, tão luminoso, olhos claros, de um azul que fazia imaginar destinos irreais, e um sorriso escondido, tímido, atrás de uma expressão sóbria. Mais bonito do que os outros que passaram antes, que mal tinham tocado a minha curiosidade, e com algo dentro dele que era denso e sombrio, que eu mal conseguia identificar mas, não tinha dúvidas, estava lá.. Nenhum dos outros me causara as sensações que corriam agora dentro de mim, nenhum dos outros me fizera voltar o olhar e espreitar com mais atenção.

Segundos depois, extinguiram-se os sorrisos e os olhares eram fixos e sérios, como se só eles existissem no mundo nesse momento, eclipsando as pedras, as árvores, o lago, até eu, aqui, sólida e imponente, apesar de invisível aos seus sentidos, e abraçaram-se como se se quisessem fundir, beijando-se com intensidade.

Nunca tinha visto algo assim, nem quando eu própria era mortal.

O que se seguiu, o arrancar apressado das roupas, os gemidos ofegantes, os movimentos animalescos, acordaram algo em mim que não sabia sequer que existia. Algo monstruoso. Mais monstruoso ainda, quero eu dizer.

Algo que queria ficar.

Algo que me fazia querer libertar de onde estava.

A sequência de movimentos repetiu-se, uma, duas, várias vezes, até a respiração denunciar o cansaço, até quase o sol se pôr na colina.

Vi-os arrumar as coisas espalhadas e prepararem-se para partir.

Senti que a odiava com todas as minhas forças, que a queria ter só para mim, mas que lhe queria fazer mal também.

Então, tive uma ideia. Não podia não voltar a sentir este vibrar que eles me causaram e, mesmo sem conseguir chegar a ela, ele era tão fácil de dominar…

Ordenei ao vento que mexesse as folhas num ramo, que lhe soltasse uma madeixa do cabelo, que era longo e da cor da palha nos campos, o que fez o fez olhar na minha direcção. Foi tão fácil.

“Aylmer…”, chamei.

“Aylmer…”. Dei a minha ordem à sua mente. O seu sorriso confirmou-o. Era meu. Estava feito.

Era esse o seu destino, agora.

Era essa a sua missão, incumbido pelo seu anjo, a sua musa, a sua inspiração.

“Callia.”

O meu nome escapou dos seus lábios, ou teria sido o vento?

Fraco! Fraco! Como todos os mortais.

…………

A lua erguia-se na colina embora o sol ainda não se estivesse escondido completamente.

Aylmer olhou as mãos. Estavam manchadas de sangue e seguravam ainda o seu punhal, exemplarmente bem cuidado, como era seu dever de cavaleiro.

A estranha pedra que vira no círculo  no centro da floresta, junto ao lago, ecoava na sua mente como se fosse a mulher mais bela que havia visto, e a sua ordem ainda latejava nos seus ouvidos.

Fora tão fácil obedecê-la.

Será que era o desejo dela, ou o seu, que comandara as suas mãos a trespassar com o seu punhal o coração de Brea? 

Ainda sentia cravado nele o seu olhar acusador quando ela compreendera a traição e vira a revelação das suas intenções.

Respirou fundo, mas não se sentia neste lugar. Nem era prudente que ficasse.

Estava feito. Não havia nada para ele aqui, agora.

Aylmer avançou na direcção da floresta.

……

Callia viu Aylmer olhar o céu, mesmo não estando no alcance do seu horizonte.

Sabia que iria achar estranho o modo como nenhuma estrela se mostrava. Apesar disso, a Lua brilhava intensa, e iluminava tudo em redor. Não teria dificuldade em ver o caminho, em chegar a ela. Chamou-o com a mente. Era tão fácil fazê-lo obedecer aos seus pedidos.

A floresta densa erguia-se perante ele, mas não lhe foi difícil vislumbrar a pequena abertura para o discreto caminho que a atravessava de uma ponta à outra, contorcendo-se no interior por entre as árvores centenárias e os rochedos cobertos de símbolos desde tempos imemoráveis, arbustos transformados em árvores, troncos entrelaçados entre si, uma interminável hera a acorrentá-los de alto a baixo, pequenos ribeiros e cascatas em lugares surpreendentes, escondidas e prontas a saciar a sede a viajantes desorientados, por qualquer dos lados que se conseguisse entrar, um labirinto interminável, até seguindo pelo quase invisível carreiro até ao ponto mais secreto, ao lugar de maior poder, no seu centro, junto ao lago do fundo dos tempos e do círculo de pedras que já ali estava desde antes dos homens que correm agora a Terra.

As árvores pareciam sussurrar o seu nome, o de Brea, o de Callia, o seu crime.

Às vezes, pareciam gritá-lo. Apressou o passo e continuou a ouvi-lo. Parou, e ele continuava. Talvez agora fosse assim. Ou talvez fosse do lugar. Uma parte de si sentia-se atraída, mas algo lhe rosnava que era maligno e que seria castigado, que merecia ser castigado.

Aylmer estava de regresso ao local onde a encontrara a primeira vez, junto ao lago escuro e assustadoramente tranquilo, junto ao círculo de pedras com símbolos que não conhecia, debaixo de um emaranhado de ramos densos e intemporais, sob a luz intensa da lua cheia.

Parecia que se tinham passado séculos desde o dia de ontem, em que ali estivera com Brea.

Aproximou-se da mulher que parecia uma deusa, ou uma pedra entre as que ali estavam, ou a própria lua.

Parecia-lhe tão alta, mas não sabia que era o efeito causado pelo brilho da lua e pela ausência de som, excepto o que vibrava dentro de si. Os seus olhos fixavam-no como se quisessem prendê-lo, e comseguiram-no, olhos tão escuros, tão fundos, tão imperiosos, que a sua respiração se suspendeu. Sorria como se tivesse alcançado o que desejava, um sorriso de conquista, de vitória não se consegue esconder, e Aylmer não sabia se queria fazer parte dessa conquista ou se devia ter medo dela, porque ao olhá-la sentiu-se gelar.

As vozes na sua cabeça calaram-se, como sucedera antes com os sussurros da floresta. O silêncio era palpável.

Ajoelhou-se aos seus pés e baixou a cabeça, subjugado pela aura de poder que dela emanava. 

Como podia ser tão bela?

Sentiu medo e luxúria e ódio ao mesmo tempo.

Eram dele estes sentimentos, ou eram dela?

Como lhe podia controlar os pensamentos e instruí-lo a pegar no punhal que trazia à cintura?

Lentamente, mas decidido, subiu o punhal acima da sua cabeça, olhando-o.

Reflectia a luz da lua, que passava pela abertura das árvores altas.

Reflectia o olhar escuro de Callia, onde se reflectia a luz da lua.

Como podia não obedecer à sua ordem?

Lentamente, olhos de novo os céus, fechou os olhos e inspirou fundo.

Sentiu o coração a acelerar e depois a acalmar.

Finalmente, compreendera.

Uma lágrima escapou, rebelde.

Num golpe experiente, baixou o punhal ao lugar no seu pescoço onde sabia que a morte viria mais rápida.

Ainda levantou o olhar a Callia, a sua deusa, o seu carrasco, e conseguiu compreender o seu sorriso triunfante.

Não passara de um peão nas suas mãos.

O sacrifício fora, finalmente, consumado.

……

Callia sorria, mexendo lentamente os membros, que sentia como novos.

Sim, fora mortal e fora enganada. Ficara tempo demais transformada em pedra e agora queria viver.

Aylmer fora perfeito para o seu desejo, e agora ficaria no lugar dela, uma pedra para a eternidade, e ela era… livre!

Mas… livre para quê, afinal?…




quinta-feira, 13 de junho de 2024

A pedra intemporal.


Benedictus Vecchio, padre desde há uns mil anos, outrora sacerdote de outra crença, mais selvagem, mais viva, quem sabe mais verdadeira, olhou as pedras à sua frente.

O vento soprava forte sobre as ervas altas, passando pelo meio das folhas dos castanheiros e dos carvalhos, e este era o único som que ouvia agora, e era igual ao que sempre ouvira neste lugar, excepto nas noites de celebrações, em que o som era o das vozes dos homens a falar ou a cantar, e o do crepitar das chamas das fogueiras altas, cujas labaredas se estendiam aos céus nas noites límpidas cheias de estrelas, independentemente do deus que veneravam. Se respirasse fundo algumas vezes, se focasse a mente e se concentrasse nos sentidos, conseguia sair do tempo em que estava e voltar atrás. Já não o fazia com tanta facilidade, mas este planalto, com quatro dólmenes, ou três dólmenes e uma meia capela, agora também uma ruína, e o horizonte à sua frente, era um dos poucos locais onde isso ainda era possível. A mão humana quase não chegava aqui, ficava-se na aldeia ali em baixo, e na vila ainda mais abaixo na serra, e os que aqui vinham tinham objectivos bem definidos, fossem estes mais leves ou mais profundos. Não se vinha para aqui passear por acaso.

Tocou a pedra e sentiu-se desaparecer do tempo presente por longos minutos. Ainda conseguia viajar sem sentir o vácuo do tempo no fundo da barriga. Abriu os olhos e olhou em volta, em seu redor estava já a anoitecer. As raparigas que estavam a empilhar os ramos secos no meio das pedras para a cerimónia desta noite olharam-no, reconhecendo-o. A que tinha os cabelos cor de fogo sorriu-lhe. Era a noite do solstício de Verão. A noite mais curta e o dia mais longo.

Nos dias de hoje já não precisava de caminhar até aqui acima. Fizera uma viagem confortável por parte do sul da Europa numa mota razoavelmente silenciosa, e instalara-se civilizadamente numa pousada na vila, que pouco mudara desde que aqui vivera. Agora até tinha wifi e podia publicar logo nas redes sociais as fotos que tirava. Fotos de plantas e de pedras e de gatos, principalmente, mas… enfim, conseguia adaptar-se bem aos tempos modernos, apesar de viver na maior parte do tempo tranquilo num convento numa colina no meio das vinhas e com o cheiro da brisa marinha não muito distante, assim como a sua névoa súbita e húmida.

O castelo que antes conhecera como uma defesa inatingível era agora uma bela ruína, onde tinha tido a agradável experiência de uma feira medieval, mas com comida e bebida servida de forma mais higiénica, para seu grande prazer, e o solar onde dormira tinha uma cama com lençóis macios e lavados e uma fantástica casa de banho com água canalizada para um merecido duche, coisa que era impensável em tempos passados, quando percorrera estas serras a defender as gentes dos loucos com a máscara ou a bandeira da Inquisição.

Nestas alturas, sentia-se indeciso. A vida não era simples para ninguém, em nenhum tempo do mundo conseguia existir sem que tivesse de se confrontar com conflitos, com intolerâncias, com a raiva e insatisfação das pessoas. Mas aqui, olhando o planalto cheio de carvalhos antigos em seu redor, e que no mundo em que vivia agora não passavam de um nome dado ao lugar, as suas folhas a sussurrar com a brisa do anoitecer, o sol a descer na montanha mais além, onde se refugiaram os povos rebeldes, os troncos a serem percorridos pela névoa subtil do anoitecer… largou a pedra e ficou mais um pouco, olhando-a no tempo em que estava, imponente e dona de si própria, uma deusa no meio da serra, no meio das árvores, no meio da gente que a venerava como divindade.

Só por hoje, decidira, não iria regressar.


Semana 24/2024 ou isso, estou no meio dos exames, não sei nem em que planeta estou....

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Silêncio


Eduardo vivia no silêncio.

Era mudo. Desde sempre. Nunca chegara a pronunciar um som, em toda a sua vida.

Desde que começara a compreender o mundo à sua volta, a sua perspectiva não fora a mesma das outras criança, e a adolescência foi um sonho estranho e cheio de mudanças bruscas de temperatura.

Agora, em adulto, estava mais ou menos habituado a que o olhassem de lado, com desconfiança, com pena, às vezes com asco.

Mas não se importava. Afinal, o mundo em que vivia era bastante interessante.

Quem sabe se, para compensar a sua ausência das palavras faladas, os seus outros sentidos tornaram-se mais desenvolvidos do que o habitual, e a solidão com que sempre vivera dera-lhe tempo para o fazer.

Por esse motivo, o prazer com que escutava as composições de Beethoven era sincero e devastador.

No entanto, o ruído que as outras pessoas faziam deixava-no atordoado. E aprendera a deixar de ouvir. Era também surdo, mas por vontade própria.

Por esse motivo, dedicara a sua vida a observar as estrelas por entre os ramos das suas árvores.

E a partilhar a sua solidão com elas.

Adorava sentir o cheiro das frutas frescas acabadas de colher da sua horta, e tocar na casca suave ou rugosa dos vegetais que colhia.

O que tocava falava com ele em muitas palavras de sensações.

O seu paladar era apurado à conta de todo o treino que investira nele e, porque não, pensava orgulhoso, algum talento inato.

A sua particularidade não era uma aberração, mas um dom!

Olhou o seu quintal cheio de cores e de cheiros, o vento a passar, para ele silenciosamente, pelas folhas da velha árvore que se erguia no meio do terreno e que se recusara a cortar, construindo e plantando em seu redor.

Viu o anoitecer a chegar, os pirilampos a brilhar na escuridão lá ao fundo e as pequenas luzes com paineis solares a acender, enquanto os guinchos e as gargalhadas que sabia estarem a ser emitidos não chegavam ao seu cérebro.

Sim, era diferente na sua expressão física neste mundo, e também na sua alma.

Foi por isso que não sentiu qualquer remorso quando serviu os cogumelos venenosos a Frederica, a sua vizinha tagarela, que nascera com todas as palavras que lhe haviam sido recusadas em vida e mais alguma, e a viu asfixiar dolorosamente no chão, imaginando apenas os sons que fazia ao arquejar e ao se engasgar com todas as palavras que não soubera partilhar.

Mais uns momentos, e o quintal ficou novamente em silêncio.

Para Eduardo, foi sempre assim que esteve.





Semana 21/2024

segunda-feira, 20 de maio de 2024

O tempo parado.

Hoje vieram trazer um relógio à livraria.
Atentem, não é um mero relógio, portátil, prático e com um aspecto minimamente tolerável.
Não...
É um mamarracho.
Horroroso como o deus grego dos infernos que está ali naquele “Guia de Interpretação dos Mitos Gregos”.
Velho como o tempo. Como o exemplar das “Religiões da Lusitânia”, do José Leite de Vasconcelos, edição de 1897.
Ainda por cima parado. Como a trilogia do Lusco Fusco, como lhe chama a Florbela. Parados nas estantes, e cada vez chegam mais destes.
Aqui, nesta livraria, é tudo em segunda mão, afinal.
Móveis em segunda mão. Ou com experiência de vida, como ela diz.
Livros em segunda mão. Ou com histórias dentro de histórias, também como ela diz. Gatos em segunda mão, e em relação a esse aspecto não me queixo, e até compreendo bem o que a Florbela me diz, enquanto me coça a papuça debaixo do pescoço.
Quem mais ia aceitar um gato cego de um olho, magricela e com um tom cinza deslavado tão sujo que mais parecia cinza da lareira?
Só mesmo a Florbela para pegar em mim e dar-me todos os mimos que eu não sabia que os gatos mereciam.
Por isso, também sou em segunda mão, ou mais, sei lá eu, e com uma história, ou mais, sei lá eu.
Tenho de confessar: o relógio limpo tem outro aspecto.
E, olhando de perto, vemos que é percorrido por riscas e nomes: Mariana, Catarina, Quim, Ana, Artur, Francisco.
Crianças que foram, um dia, e que cresceram.
Quantas histórias terá este relógio parado?
As crianças já não o são mas, aqui, sê-lo-ão para sempre, paradas num momento no tempo.
Percebo porque é que a Florbela o trouxe para aqui: é mais uma história para contar.



Desafio Semana 20/2024

domingo, 12 de maio de 2024

A incrível história do Gavião que não sabia voar, e da Rosa que lhe mostrou para que serviam as asas.

Agapito Higino dos Santos Gavião, pastor de profissão, filho de Madalena dos Santos e de António Gavião, herdeiro dos nomes dos seus avôs, o que lhe agastou um pouco a infância e a adolescência e também outras alturas da vida que já irei explicar, 45 anos de idade, estado civil solteiro, estatuto solteirão e, mais concretamente aqui na aldeia de Casais das Lages, de encalhado.

Encalhado por causa do nome, provavelmente, e por causa do cabelo ruivo, quase de certeza. As raparigas fugiam todas dele. Quer dizer, não fugiam a correr, é claro, mas nenhuma aceitava conversar com ele mais de dois minutos, e a ele também já não lhe interessavam as conversas, depois de ficarem a olhar fixamente para o seu cabelo ruivo, em vez dos seus olhos.

Até o Tenório Pintassilgo tinha conseguido arranjar noiva, casar e ter um bando de filhos risonhos, e o Hilário Pisco tinha publicado um livro com os seus desenhos das plantas do campo sem se sentir envergonhado… e ele a correr os montes para não ter de ver as pessoas, para as pessoas não terem de o ver, a calcorrear serras e vales, a conversar com as ovelhas por não ter com quem falar, já lhes lera os livros todos da pequena biblioteca, já lhes contara lendas das velhas da aldeia e as histórias que só existiam na sua cabeça e na sua boca e só ecoavam pela serra, levadas pelo vento.

Passara toda a vida assim, sempre a caminhar.

Olhou lá em cima o outro gavião a planar, asas azuis a desafiar os céus. Outro se juntou, castanho, uma fêmea. 

Parou e sentou-se, a observar.

Olhou as árvores e as pedras e o seu dançar lá em cima.

Ouviu o vento a marulhar nos ramos e a rodopiar as folhas.

A seu lado sentou-se Rosa, a Rosinha, colega da escola, vizinha desde sempre. Tão calada, de olhos grandes.

Nunca falava, só olhava, mas os seus olhos contavam histórias dos mundos que haviam de ver.

E ali ficaram os dois, a planar na brisa da tarde.


Desafio Semana 19/2024

domingo, 5 de maio de 2024

As subtis nuances da Física

Não é fácil construir um foguetão.

Não um foguetão a sério, daqueles em que cabe uma pessoa, mesmo um rapaz de 9 anos. Um dia destes, talvez, que as férias de Verão são longas.

Mas um foguetão, mesmo assim.

Exige técnica, perícia, concentração.

Livros esquisitos e específicos da biblioteca requisitados com o cartão da mãe, entregues com um olhar de esguelha da Menina Andreia, que só a vê levar romances cor-de-rosa e livros de técnicas de poda.

Material.

Principalmente material.

O Jorge quase foi apanhado na garagem do avô. Escapou por um triz.

O Paulo convenceu a prima Bia a trazer os rolos de alumínio da cozinha da mãe dela, enquanto apanhou todos os que tinha em casa.

Passaram quatro tardes inteiras a raspar a pólvora dos fósforos a que conseguiram deitar as mãos nas semanas anteriores.

Havia mães, avós, vizinhos, sem uma caixa de fósforos, além do Sr. António do café, aventura que os fez ganhar a fama de uma brilhante escapadela, por dois dedos, do Pirolito, quando ainda foram apanhar mais umas quantas à churrasqueira dele.

Não havia motivos para falhar.

Escolheram o lugar certo, o que os seus cálculos de terceira classe indicaram como o mais propício para conseguirem atingir o seu objectivo.

Como precaução, abrigaram-se atrás da vedação de madeira, que tinha um buraco estratégico. A estratégia era do irmão mais velho do Paulo, que gostava de espreitar as meninas a apanhar sol. A adolescência…

Foi, por isso, com um certo desgosto que, em vez de verem o super foguetão (amador) dos Primos Jorge e Paulo levantar um sublime, elegante e fiável voo em direcção à lua, o viram apontar certeiro à janela da saleta da Menina Andreia, estilhaçando-a em pedaços e deixando dois gatos bastante furiosos.



Desafio Semana 18/2024

domingo, 28 de abril de 2024

Debaixo da pele do Lobo

Primeira noite de Lua Cheia. O céu estava limpo, e ela iluminava tudo em volta. Na floresta de pinheiros nórdicos com picos de neve alva, um nevoeiro baixo atravessava os troncos das árvores, aqui e ali, como um lago fantasma.
Naquela época obscura, era melhor não se parar durante muito tempo, numa noite silenciosa como esta, neste tipo de lugar, pois as bruxas, os demónios ou os espectros fantasmagóricos podiam aproveitar para se apoderar da alma do caminhante imprudente que se aventurasse nas estradas.
Saindo lentamente detrás de uma árvore, uma figura cinzenta atravessa a luz do luar, por momentos. Houve ainda tempo para vislumbrar dois olhos luminosos e um porte majestoso: era um lobo.
Mas eis que surge uma segunda silhueta. Depois, uma terceira...
Vários lobos, uns negros, outros com várias tonalidades de cinzento, como que surgindo de dentro de cada sombra, assenhoravam-se da clareira, e juntavam-se debaixo da árvore gigantesca que estava num dos lados, tranquilamente, formando um círculo no pequeno espaço à sua frente.
Aos pés da árvore, erguia-se um lobo cinzento-escuro de grande envergadura e olhar feroz.

Imóvel, aguardava que os seus irmãos tomassem lugar.
Finalmente, ergueu os olhos à lua brilhante que os observava no céu lá ao longe e soltou um uivo, longo, lento, poderoso, terrífico.

Os seus irmãos seguiram-no, inspirados pelo seu poder e pela sua força.
Ele era um deles.
Subitamente, sentiu-se um cheiro intenso a mato queimado, demasiado próximo.
A sua natureza meio animal, meio humana fez os seus sentidos apuraram-se e os pêlos no lombo eriçaram-se-lhe. As orelhas procuravam captar ruídos distantes que se aproximavam silenciosos e que formavam um círculo traiçoeiro em redor da alcateia.
Percebera, aterrorizado, que era impossível fugir.
A uma ordem, várias figuras demasiado rápidas para serem humanas surgiram com passos largos e decididos da sombra espessa das árvores e da fluidez da bruma. Alguns puxaram os capuzes para trás e abriram as suas capas, mostrando armas de morte com sede de ser usadas.
Vampiros. Era uma caçada – um jogo do instinto. E os lobos a presa escolhida.
Enoch não teve noção do que se seguiu, de tão confusos se tornaram os movimentos. Teriam passado minutos, horas, ou apenas segundos?
Ficara com os sentidos poderosamente apurados – o cheiro a queimado, o som das labaredas e dos ganidos, o aroma do sangue, a respiração dolorosa. Sentiu dor. Pungente e intensa.
E a única imagem que tem a certeza de ser verdadeira no meio da sequência rápida e nebulosa foi a de uns olhos verdes que se tornavam incandescentes da cor das chamas que os rodeavam, e que se aproximavam cada vez mais dos seus, um sorriso malicioso num rosto perfeito e angelical, com uma aura brilhante, quase branca, de longos cabelos lisos que revolviam lentamente ao sabor do vento estranhamente quente que se levantava dos pés deste homem belo e assustador, unicamente à sua passagem.
Sentiu a carne rasgada por umas garras fortes e o sabor do sangue na garganta, na boca e nos lábios, escorrendo-lhe pelo queixo, que entretanto se transfigurara de um de lobo para um de homem. Sentiu os olhos húmidos e depois uma lágrima quente a deslizar-lhe pela face e a juntar-se ao fio de sangue que escapara pelos lábios.
Viu tudo ao seu redor dissipar-se sob uma luminosidade com vida própria e sentia os uivos agonizantes e as gargalhadas arrepiantes e maldosas muito ao longe a cravarem-se-lhe na própria pele, e teve a certeza que seria para sempre.
Depois foi a escuridão.

Enoch van Heen acordou repentinamente, encharcado em suor, com arrepios de frio, a respiração entrecortada e a vista turva.
Sentou-se lentamente, tentando perceber onde estava. Tacteou no escuro com uma mão, enquanto esfregava os olhos com a outra. O cheiro intenso a palha e a caixotes de madeira despertaram-no um pouco.
O vagão do comboio. Era aí que estava escondido. Fugia. Ou ia em busca de alguém, talvez. A única pessoa que poderia considerar seu amigo e que conhecia o seu segredo.
Recordou vagarosamente o sonho que tivera. Não era um pesadelo, mas uma memória, a mais dolorosa de todas. Fora nessa noite que perdera quem considerava ser a sua família. Todos eles.
Enoch fora o único sobrevivente de um jogo mortal no qual não se inscrevera porque a brutalidade dos ferimentos provocara a transformação que revelara a sua forma original: a de um homem.
Lembrava-se do vampiro que o capturara, Gabriel, líder do bando de assassinos e, por vezes, tinha flashes febris das sessões violentas de tortura e das experiências macabras a que fora submetido. Em todas elas, o sorriso desumano era o mesmo.
Acocorou-se novamente no canto onde estava e fechou os olhos, procurando fazer desaparecer as imagens sucessivas que rodopiavam provocadoras à sua frente.
Respirou fundo e concentrou-se em diminui-las cada vez mais, até elas se diluírem completamente e Enoch conseguir entrar num sono profundo e pesado, sem mais sonhos por aquela noite.




Desafio Semana 17/2024



A Voz no círculo na Floresta

Aqui, neste lugar onde me encontro, já seis mil anos se passaram sob os meus pés. As águas do lago mantêm-se calmas, não denunciando que são...